sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

José Fabrício das Neves (44)

Um piquete contra Isidoro


José Fabrício das Neves e seus homens. Detalhe de foto tirada
possivelmente em 1919 no atual município de Catanduvas-SC.
Acervo: Reinaldo Antunes, bisneto de Fabrício (Pinhão-PR).



"Fabrício vou te orientar
que vou morrer neste ato
mais tu não passe do meu sangue
volte de novo pro mato
no sertão tu será um tigre
e no campo vai ser um gato".


A morte do coronel José Fabrício das Neves numa emboscada o tornou lendário entre os caboclos do sertão catarinense e em algumas comunidades no Paraná. Os relatos do ocorrido são repletos de detalhes contraditórios, mas todos convergem para o momento em que Marcelino Ruas e seus homens armam uma ardilosa espera. Os motivos vão desde uma recompensa de 40 contos de réis oferecida pela viúva de João Gualberto, passando por disputas político-partidárias, para chegar na nebulosa compra de uma fazenda e os interesses contrariados das empresas colonizadoras. Ingredientes poderosos para o surgimento das diversas representações por parte de escritores, caboclos e familiares.

O verso de uma décima de Antônio Fabrício das Neves, reproduzido acima, simboliza o primeiro aviso dado ao caudilho. Ele não deveria deixar a protegida região de serras, florestas e cursos d’água da região próxima ao rio Uruguai (“no sertão tu será um tigre”) e se aventurar por áreas em que ficaria desprotegido (“e no campo vai ser um gato”). E mais, dizia José Maria a Fabrício: “Tu não passe do meu sangue”. No final de 1924 o caudilho passou do sangue derramado por José Maria no Banhado Grande de Irani, indo morrer a poucos quilômetros de distância, além do ponto crítico indicado por seu antigo companheiro do projeto de colonização da região. Obviamente que o apelo da mensagem do monge não é geográfico, antes encerra, ao mesmo tempo um conselho e uma profecia: que ele não se metesse com os negócios da República dos Pica-paus. E não deixasse de proteger os caboclos da região.

Podemos tomar como ponto de partida o levante do general da reserva do Exército Isidoro Dias Lopes na capital paulista, no dia 5 de julho de 1924, quando entra em cena outro personagem, Marcelino Camilo Ruas. Residia na Fazenda Velha, próximo ao local onde se cruzam as rodovias federais BR-282 e BR-153, segundo Ferreira (1992, p. 63). A exemplo do que havia feito o coronel Passos Maia com seus 500 provisórios sob a denominação de Batalhão Marechal Bormann, Marcelino e Fabrício criaram seus piquetes de voluntários para defender a legalidade, ou seja, combater o levante de Isidoro, que havia sido tenente da coluna de Gumercindo Saraiva na Revolução de 1893. “Marcelino se aproximou de Fabrício convidando-o para batizar uma filha”, assinala o autor.

De acordo com Ferreira (1992, p. 63), José Fabrício teria formado seu piquete por sugestão de Ruas, “sob o argumento de que, combatendo a favor do Governo, ele, Fabrício, ‘limparia o nome’, já que os fatos ocorridos durante a Batalha do Irani haviam tornando visado o coronel”. O caudilho reuniu rapidamente seus homens espalhados pelo vale do rio Jacutinga, Itá e a atual Concórdia, todos armados e com montarias. José Gomes se recorda da despedida. “Foi em 24 que ele esteve na nossa casa. Foi a segunda e última vez que vi ele. Foi convidar meu pai para ir junto com ele”, assinala. O pai de José, Domingos, “foi um trecho junto com ele e achou melhor voltar”. Na mesma ocasião, relata Gomes, o veterano imigrante Guilherme Rosatto, que mantinha boas relações com os caboclos e o coronel, teria dito: “Fabrício, não vai deixar o couro por lá!”

Apesar dos conselhos, o caudilho seguiu em direção a São Paulo. A meio caminho, os revoltosos de Isidoro Dias Lopes abandonaram a capital paulista, seguindo um contingente para o ato Grosso, e outros grupos se internando pelo interior do Paraná rumo a Foz do Iguaçu. O general-de-divisão Cândido Rondon, responsável pela repressão ao levante, assumiu o comando das Forças em Operações de Guerra nos estados do Paraná e Santa Catarina, ao qual foi incorporado o Batalhão de Infantaria Catarinense, organizado em agosto de 1924. Os três batalhões patrióticos sob o comando de Passos Maia, Marcelino Ruas e José Fabrício das Neves seguiram com essa força, comandada pelo então major Pedro Lopes Vieira, todos subordinados a Rondon (RIBAS, 1985, p. 24-25).

Fabrício acompanhou as forças legais pelo interior de São Paulo e sobretudo no Paraná, onde ocorreram combates, embora não existam muitos detalhes dessa participação. Lara Ribas e Rosa Filho, entretanto, citam o envolvimento do caudilho num episódio que pode ter relação com a emboscada de que seria vítima, semanas depois. Visando surpreender os rebeldes pela retaguarda nos sertões do Alto Paraná, conta Rosa Filho (2001, p. 62), militares paranaenses passaram a executar melhorias numa picada, visando a passagem das forças legais. A manobra foi percebida e os revolucionários desfecharam “violento tiroteio contra a tropa”, sob o comando do capitão Joaquim Antônio de Moraes Sarmento.

Naquele momento, as forças catarinenses estavam incorporadas ao Destacamento Santa Catarina, sob o comando do coronel do Exército Vasco da Silva Varela. No dia de Natal de 1924, acionado por Rondon, o coronel Varela mandou um oficial catarinense informar ao capitão Sarmento sobre o envio de “um contingente de patriotas organizados pelo coronel Fabrício das Neves” com o objetivo de apoiá-lo (ROSA FILHO, 2001, p. 62).

O oficial de ligação era o jornalista Mimoso Ruiz, que escreveu mais tarde sobre aquele momento. “Ao transmitir a ordem ao capitão Moraes Sarmento, declarou-me este oficial que iria, sem demora, colocar as suas metralhadoras em posição”, para “receber ‘com todas as honras’ (textual) o coronel Fabrício das Neves”. Argumentou que não esquecera ter sido ele o “assassino do coronel João Gualberto e o único responsável pelas mutilações que ele próprio sofrera, bem visíveis nas cicatrizes que tinha patentes no rosto”. Ruiz levou a informação a seu comandante imediato, Lopes Vieira, preocupado com as conseqüências do encontro de Fabrício e Sarmento. O jornalista comissionado como oficial, viajou a noite por cinco léguas para que a “tragédia fosse evitada” (RIBAS, 1985, p. 34).

Rosa Filho (2001, p. 62), confirmando a fonte anterior, escreve que ao receber a informação da presença de José Fabrício, o capitão Sarmento ficou “bastante nervoso, declarou que iria, sem demora, colocar suas metralhadoras em posição, a fim de recebê-lo com todas as honras”, que não havia esquecido os fatos do combate de Irani. Nessa ocasião, Sarmento recebera um “tremendo golpe de facão que lhe extirpou a vista direita, prostrando-o por terra”.

A ira de Sarmento sobre Fabrício vinha sendo remoída há 12 anos. No combate de Irani, ocorrido em 22 de outubro de 1912, o então alferes foram gravemente ferido, tendo desfalecido algum tempo. Ao se recuperar, a luta continuava. Amarraram um lenço em seu rosto. Conforme narrou mais tarde, o capitão Souza Miranda mandou que se abrigasse na floresta e aguardasse socorro. Foi, voltou a desmaiar devido a perda de sangue. Mais tarde recobrou os sentidos e perambulou “algum tempo sem orientação”, até encontrar o alferes Libindo e foram os dois a procura de água. Junto a um córrego, foram “alcançados por dois fanáticos”. Os dois levados (ROSA FILHO, 1998). Vimos esses detalhes em postagens anteriores.

É possível que após esse episódio envolvendo um antigo desafeto, atual patrono da Polícia Militar do Paraná, José Fabrício tenha sido dispensado e mandado de volta. Pode ter permanecido mais alguns dias na região, mas o fato é as lutas prosseguem no Paraná e outras áreas e o caudilho vai ser morto em Irani. A emboscada aconteceu quando os piquetes de José Fabrício e Marcelino Ruas retornavam a seus lugares de origem. Os detalhes da emboscada serão apresentados nas próximas postagens.


Referências

FERREIRA, Antenor Geraldo Zanetti. Concórdia: o rastro de sua história. Concórdia: Fundação Municipal de Cultura, 1992.

RIBAS, Antônio de Lara. Polícia Militar de Santa Catarina. Ações de Guerra dos Batalhões de Infantaria. Período de 1922 a 1930. Florianópolis: Polícia Militar de Santa Catarina, 1985.

ROSA FILHO, João Alves. Revolução de 1924. Curitiba: Associação da Vila Militar, 2001.



Nota - O capítulo acima é uma adaptação do que foi publicado no livro O mato do tigre e o campo do gato: José Fabrício das Neves e o Combate do Irani (Florianópolis: Insular, 2007).


Atentado de óbito


"Aos vinte e nove dias do mez de Janeiro do anno de mil nove centos e vinte e cinco neste 5º Distrito do Município de Cruzeiro, Estado de Santa Catarina, Districto de Iranÿ, em meu cartório compareceu Miguel Soares do Espírito Santo, e declarou que no dito dia as trez horas da tarde falleceo assassinado, sem assistência medica, contava cincoenta anos de idade, natural do Rio Grande do Sul, deixando os seguintes filhos, 1º Afonso com dezoito anos de idade 2º Elibia com quinze anos de idade, 3º Hortência com doze annos de idades 4º Domingos com deis anos de idade, e era casado civilmente com Dona Crespina Maria das Neves; e deixou bens a dar em ventario e para constar lavrei este termo e dou fé; Eu Galdino Ferraz Moreira Branco, escrivão Interino do Registro Civil que o escrevi dato e assino.


Iranÿ, 5 de Abril de 1925.
Miguel Soares do Espírito Santo
Hildebrando Antonio Mathias”.

Fonte: Cartório de Irani-SC.
Lº 1, Flª 3 de Registro de Óbito de Jozé Fabrício das Neves.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

A religiosidade de São João Maria (7)

Festa de Santo Antão (7)














Cenas da 161ª Festa de Santa Antão (Santa Maria-RS).
Última postagem das festividades.
A série sobre a religiosidade de São João Maria prossegue.



Leituras

O profeta vive

Projeto de Pesquisa. O profeta não morreu - A presença do monge João Maria entre populações rurais catarinenses. Integrantes: Maria Amelia Schmidt Dickie e Tânia Welter (coordenadora).

"Este projeto trata da presença contemporânea do monge João Maria junto à diversas populações rurais (cafuzos, caboclos e colonos de origem), com pertença religiosa diversa e residentes no espaço catarinense onde ocorreu a Guerra do Contestado (1912-1916). Tomando a religiosidade como pano de fundo, o objetivo será buscar as referências ostensivas e não-ostensivas a João Maria para compreender a dinâmica de sua re-significação e descortinar o mundo que o engendra, ou é engendrado por ele. Para atingir este objetivo, se observará a presença de João Maria utilizando recursos da pesquisa qualitativa como entrevistas (especialmente a semi-estruturada), visita aos locais de devoção e participação em atividades ou eventos religiosos nas regiões de Fraiburgo (mais especificamente a localidade de Taquaruçu), Campos Novos (especialmente a Comunidade Invernada dos Negros e um assentamento do MST), Serra Catarinense e José Boiteux (Comunidade Cafuza)."


Texto de Tânia Welter (*)

"O projeta São João Maria continua encantado no meio do povo" - Um estudo sobre os discursos contemporâneos a respeito de João Maria em Santa Catarina. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do título de doutor em Antropologia Social, sob orientação da Professora Doutora Maria Amélia Schmidt Dickie. Florianópolis, 2007.


(*) A professora Tânia Welter é doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (2007), com estágio doutoral na Universidade Nova de Lisboa (Portugal, 2005/2006). Possui licenciatura em Ciências Sociais (UFSC, 1988), especialização em Educação Sexual (Udesc, 1997) e Mestrado em Antropologia Social (UFSC, 1999). Tem experiência no Ensino Superior e interesse em Religião, João Maria, Campesinato, Antropologia, Sociologia e Educação. (Fonte: Lattes)


Religiosidade no sul do Brasil

Nos caminhos do Santo Monge: religião, sociabilidade e lutas sociais no sul do Brasil
Cesar Hamilton Brito Goes

"Esta tese trata da formação religiosa dos grupos populares no Sul do Brasil, em especial dos caboclos. Essa religiosidade está baseada em uma crença popular específica, que trata dos poderes de um andarilho que fez sua fama no século XIX entre os Estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Outros andarilhos surgiram neste espaço até os anos 30 do século XX, e as narrativas de cada um deles fundiram-se em torno de um personagem, hoje cultuado como um santo, conhecido como Santo Monge ou São João Maria. Ao estudar a crença, demonstrase como a religião, neste caso, articulou-se às concepções de natureza e cultura desses grupos para configurar, nos termos de Elias [Norberto Elias], recursos e estratégias em torno do processo de modernização. Reconstruindo os personagens reconhecidos entre as populações que vivem no sul do Brasil como monges, em especial àqueles evocados como o Santo Monge ou São João Maria, a tese apresenta a formação religiosa de uma tradição que fora dos cânones institucionais do Catolicismo, forjou-se como uma religião. Demonstra que a partir dela os seus membros estabelecem relações que resultam na permanência dos valores que estruturam a sua sociabilidade. Demonstra também que nas relações em que se constata o fim da devoção, finda um formato específico de reprodução social e de identidade dos grupos. Dessa forma, defende-se aqui que esta religião, além das especificidades que a caracteriza, ocupa centralidade nas estratégias de sociabilidade no contexto de seus devotos". Íntegra.


quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

José Fabrício das Neves (43)

José Fabrício das Neves (FERREIRA, 1990).


Mudança para Itá

A tradição oral na região de Concórdia, Irani e região mostra um José Fabrício das Neves com “namoradas em cada lugar”, como afirma a diretora do Museu de Concórdia, Alvair Santos, dona Iti. Foi visto anteriormente, através de Waldomiro Silva, que um filho do caudilho, de nome Vicente, cuidava do armazém do pai em Itá, embora não exista nenhum com esse nome de seu casamento com dona Crespina Maria Antunes. Jurema Antunes das Neves Zunker, residente em Guarapuava-PR, neta de José Fabrício (filha de Hortência), cita uma antiga moradora de Itá, dona Erondina, como sendo filha do caudilho. “Ela morreu há uns 30 dias, aqui em Guarapuava, com mais de 90 anos de idade”, conta.

Os descendentes de José Fabrício que residem em Pinhão-PR, falam de outro filho ou neto desconhecido do caudilho, residente na cidade de Bituruna-PR. As mesmas fontes fazem vagas referências à presença de Fabrício das Neves em diversas cidades do Paraná, especialmente Guarapuava e Iratí. Nesta última ele teria sido recebido festivamente por moradores e autoridades. E também em Mallet, município em que Fabrício e seus homens teriam plantado roças de milho para, mais tarde, ter alimento para os cavalos, durante andanças pela região. É o que relata Assis Antunes da Neves, filho de Afonso e neto de José Fabrício.

Em Engenho Velho (Concórdia), José Fabrício se relacionava com Josefina Boroski, com quem teve três filhos, entre os quais dona Cecília Boroski (ou Borowski), antes referida, residente em Concórdia. Seu parentesco com o caudilho, foi indicado pelo jornalista Rubens Lunge, e o fotógrafo Júlio Gomes, filho de José Gomes. Ela passa as tardes na varanda de casa, conversando com o marido, José Talim, e recebendo visitas. O casal teve dois filhos: José Narciso Talim, 62 anos, que tem cinco filhas, todas casadas, e João Talim, 60 anos, residente em Novo Hamburgo-RS, com a esposa, dois filhos e três filhas. Dona Josefina e os filhos moravam perto do engenho de cana sob os cuidados de Chico Lino, “numa casinha”, ao lado do rio Fragoso, “onde encontrava com o Jacutinga”, recorda dona Cecília (foto a direita/Júlio Gomes). Segundo Jurema Antunes das Neves, (foto a esquerda), neta de Fabrício residente em Guapuava, sua avó Crespina Maria Antunes das Neves tinha detalhes do relacionamento do marido com Josefina e da existência dos três filhos. “Ela sabia”, diz.

Segundo José Antônio Puntel, que conheceu a família Boroski, o pai de Josefina teria trabalhado para José Fabrício. É possível que diante disso, dona Crespina tenha arrumado um jeito de fazer com que o marido e a família se mudassem para Itá, onde já se relacionava com os primeiros imigrantes chegados na cidade. Tenha sido esse o motivo, ou outro, o fato é que José Fabrício “abandonou Engenho Velho definitivamente em 1923”, escreve frei Tambosi. No dia 30 de novembro “saiu o bando de peões e no dia 1º de dezembro, ele mesmo, à frente de um piquete de cavalaria” (TAMBOSI, 1941).

O mesmo autor acredita que a transferência de José Fabrício para Itá tenha sido motivada pela Revolução de 1923 no Rio Grande do Sul, “da qual queria estar perto, sem contudo ser partidário”, observa. Na ocasião teria feito um “contrato” com os “revoltosos” para a exploração de cedro em mil colônias e “embalçá-las Uruguai abaixo para a Argentina. Derrotados os revolucionários, foi cassado o contrato”. O armazém em Itá se chamava “Casa Nova”, fornecendo produtos secos e molhados, conforme indica Assis Antunes das Neves.

A mudança não significou a paz e tranqüilidade que aparentemente José Fabrício buscava. E com as quais dona Crespina sonhava. Ao contrário. Exatamente por ampliar sua influência, estabelecendo acordos com as autoridades e empresários, como veremos adiante, atraiu mais inimigos ainda. Paulo Antunes das Neves ouviu seu pai Afonso, o filho mais velho de Fabrício, relatar mais de uma vez um cerco à casa em que moravam, em Itá. Um grupo de homens teria cercado a casa e abatido a vaca leiteira de dona Crespina, colocada na brasa para assar. “Meu avô não estava em casa. Queriam matá-lo”, assegura Paulo. Com a ausência do caudilho, foram embora, mas ficou o medo.

Barracão que teria servido como QG de José Fabrício
(acima, acervo do Museu de Concórdia). Abaixo a
localização atual, junto à praça Dogello Goss, no
Centro de Concórdia-SC (foto de março de 2007).

Canjica e carne de anta

Além de se articular com o superintendente Victor Rauen e outras autoridades regionais, José Fabrício das Neves, teria entrado em entendimento direto com o Governo de Santa Catarina, pouco depois do “Acordo” de 20 de outubro 1916. “Apenas terminada a luta dos fanáticos, Fabrício fez um contrato com o Governo do Estado, em detrimento da Cia Railway, a qual nada podia fazer”, uma vez que as concessões de terras que detinha eram do tempo em que o Paraná controlava a região. “Não reconheceu Santa Catarina os contratos territoriais da Railway, e as terras foram vendidas a outros pretendentes” (TAMBOSI, 1941).

Segundo Piazza (1998, p. 253), a lei nº 1181 de 4 de outubro de 1917, dava aos detentores de títulos expedidos pelo Paraná um prazo até 1º de janeiro de 1918 para registrá-los junto ao Governo catarinense. Ela só foi regulamentada pelo decreto nº 2, de 21 de novembro de 1918. O contrato do Governo do Estado com José Fabrício, mencionado por frei Tambosi, pode ter ocorrido nesse intervalo. De qualquer forma, as concessões da Railway passaram para sua subsidiária, a Brazil Development e Colonization Company, sendo confirmadas em 1922 com o compromisso de que fossem colonizadas. Caso isso não ocorresse, as terras voltariam às mãos do Estado em 15 anos, segundo o citado autor.

A empresa cumpriu a exigência e entregou amplas áreas de terras a diversas companhias de colonização, entre as quais a Mosele, Everle Ahrons & Cia, com sede em Marcelino Ramos-RS, cujo compromisso assinado em 22 de fevereiro de 1924, envolvendo 1.073.582.648 m2, abrangia todo o atual município de Concórdia. No dia 18 de maio do ano seguinte, poucos meses após a morte de José Fabrício, começou a efetiva colonização da região (PIAZZA, 1988, p. 261).

Antes dos trabalhos serem iniciados, entretanto, algumas providências eram necessárias, visando sobretudo a presença de José Fabrício e seus caboclos assentados há mais de uma década pela região. Para essa missão foi escalado Victor Kurudz, funcionário da Brazil Development, oriundo de Curitiba, desde 1920 atuando como agrimensor com base em Piratuba-SC. Antenor Geraldo Zanetti Ferreira foi conversar com Kurudz em 1992, em Curitiba, onde residia.

Ele conta que sua família veio da província de Bocovina, atual Romênia, durante a Primeira Guerra, indo se instalar na colônia Irani, se transferindo depois para a capital paranaense. Ao chegar em Piratuba, a serviço, Kurudz logo tratou de fazer amizade com os caboclos, se referindo a eles, décadas depois, como “muito humanitários”. Logo estava na casa de José Fabrício, comendo canjica e carne de anta preparada por dona Crespina Maria, referida por Kurudz apenas por Maria. “Eu era amigo dele e eu o compreendia”, salienta.

Kurudz destaca no coronel Fabrício a “capacidade, conhecimento, uma psicologia, sabia lidar com as pessoas”. O caudilho não trabalhava, ou seja, não pegava no cabo da enxada nem tangia gado, mas vivia “rodeado de capangas que trabalhavam para ele”. Certa vez Fabrício lhe teria dito: “Comecei a trabalhar na roça, mas eu não preciso trabalhar, não gosto de trabalhar”. Para Kurudz isso era “só psicologia”, pois “ele tinha uma capacidade invejável de saber, de adivinhar aquilo que queria”.

Apesar de comer canjica e anta preparada por dona Crespina, indicando amizade entre ele e a família de José Fabrício, Kurudz produz um certo suspense ou ar de mistério do encontro na antiga estação do Barro, hoje município de Gaurama, entre Marcelino Ramos e Erechim, no Rio Grande do Sul. Ao que parece, ocorreu um desencontro e uma segunda reunião teve que ser marcada (KURUDZ, 1990). No livro em que aborda o tema, Ferreira (1992, p. 53) usa informações que não constam do depoimento, certamente anotadas durante conversas informais.
O encontro acabou acontecendo perto da estação de Barro, na pensão Sponchiado, em meio a rumores de que Fabrício estaria vindo com seus homens para algum acerto de contas, mas “seu único objetivo era encontrar-se comigo”, diz Kurudz. Logo após o café da manhã, Kurudz mostrou a Fabrício um documento que o advogado da Brazil Railway, Ulisses Vieira, “mandou para assinar”.


O acordo

Segundo o documento, cujo original não foi localizado, a empresa “se propunha entregar seis alqueires, divididos em lotes a serem distribuídos aos companheiros de Fabrício das Neves”. Eles teriam que pagar 50 mil réis ao ano por cada lote, “sendo que para o próprio Fabrício caberiam 400 mil alqueires de terras excelentes e férteis num local chamado Laranjal”, entre as regiões de Cachimbo e Planalto, em Concórdia. Segundo Kurudz, Fabrício “aceitou assinar o documento no cartório”. “Lá nos encontramos, o delegado, o juiz, eu, Fabrício e seus capangas”, garante Kurudz. “Antes de assinar, sem explicar o motivo do questionamento, Fabrício quis saber o nome do diretor da Companhia”, sendo informado que era Gonçalves Júnior. “Fabrício assinou o documento”. (FERREIRA, 1992, p. 53) A fazenda Laranjeira é a mesma em que teria sido morto o monge Nemézio.

Frei Tambosi (1941) também comenta o acordo em suas Crônicas “Para proteger os seus direitos nas colônias a Cia Railway fez um acordo com o coronel Fabrício”, entregando a ele, em parcelas, 450 alqueires “que ele distribuiu a seus caboclos, mas nunca pagou”. Entretanto, José Fabrício não figura nas listas de devedores nos Relatórios produzidos entre 1909 e 1931 pela Brazil Railway, mantidos pelo Arquivo Público de Santa Catarina, consultados em 15 e 16 de abril de 2007, em Florianópolis.

Por outro lado, existe o depoimento de Antônio Martins Fabrício das Neves, negando que seu antepassado tenha feito qualquer acordo. “Nunca ouvi falar, não é do meu conhecimento, porque se tivesse alguma relação, alguma coisa, o meu pai, meus avós sabiam disso”, garante, e “eles nunca falaram sobre isso. Eu acho que isso aí nunca, nunca houve” (Entrevista ao Museu de Concórdia, 1990). Seja como for, Fabrício deixa Engenho Velho e segue para Itá no mesmo ano em que o acordo teria sido firmado.


Fotos da praça Dogello Goss (março de 2007).

A concórdia

O mesmo Victor Kurudz envolve José Fabrício na solução de um impasse surgido na demarcação da região, onde existiam “ranchos de tábuas lascadas, habitados por caboclos, entre os quais Eusébio e João Cerilo Nery, que possuía uma bodega”, a mesma visitada pelo superintendente de Catanduva na expedição a Ita, referida anteriormente. Consta que o caboclo Eusébio, cujo nome completo se desconhece, teria se oposto à demarcação, quando Fabrício foi chamado. O encontro teria se realizado na “casa de Eusébio, uma tapera nas imediações do riacho” – o rio Queimados. O caudilho, “devido à forte influência que exercia sobre os caboclos”, serviu como uma espécie de avalista da proposta feita por Kurudz, que se “comprometeu a legalizar em nome de Eusébio uma considerável área de terra”. O caboclo aceitou, levando Kurudz a cunhar o nome de Concórdia para o lugar, hoje município (FERREIRA, 1992, p. 66).

Até que o documento do citado acordo apareça, temos apenas a palavra de Victor Kurudz, narrando fatos ocorridos quase sete décadas atrás, diante de um Antônio Fabrício das Neves que nega ter existido qualquer entendimento nesse sentido. Seja como for, a versão é a que alimenta a memória do município de Concórdia, uma espécie de mito de origem, ensinada nas escolas dos municípios. “A causa predominante no povoamento da vila foi a fixação de residência do caudilho José Fabrício das Neves, que havia estabelecido no local o seu ‘quartel-genenal’”, diz um texto da secretaria de Educação local. A colaboração do caudilho é enfatizada da seguinte forma: “Na venda dos lotes rurais, José Fabrício das Neves apresentava ao diretor da Colônia, caboclos interessados na compra de terras”. Referências ao acordo estão presentes na Internet. Exemplo: “O nome Concórdia deve-se ao fato de um acordo de paz, estabelecido entre jagunços coordenados por José Fabrício das Neves e a Brazil Development Colonization Company” (RADARSUL, 2007).(*)

O site da rádio Aliança, de Concórdia diz que visando “colonizar as terras ao longo da ferrovia, em 1912 aqui chegaram os primeiros imigrantes”, trazidos pela Brasil Devolompment Colonization Company, fundando “uma pequena vila, no local onde já residia o caudilho José Fabrício das Neves, considerado o pioneiro da colonização” (RADIO ALIANÇA, 2007). A Prefeitura de Concórdia destaca na Internet que a colonização do município foi promovida pela a Brazil Railway Co. (através da empresa subsidiária Brazil Development and Colonization Company, com sede em Portland, nos Estados Unidos), autorizada a funcionar no Brasil, a partir de 13 de março de 1912. “Nesta mesma época chegam os primeiros imigrantes, e fundaram uma pequena vila, no local onde já residia o caudilho José Fabrício das Neves, considerado o pioneiro da colonização”. (**)


(*) O texto citado parece ter sido retirado do site (estava em . Acesso em: 21 jun. 2007), substituído por outro em inglês. Acesso em 28.1.2008.
(**) O endereço citado foi substituído e o texto pode ser encontrado em novo endereço.



Notas - 1) Os textos acima, com ligeiras alterações, foram publicados em O mato do tigre e o campo do gato: José Fabrício das Neves e o Combate do Irani. Florianópolis: Insular, 2007. 2) A foto que abre a postagem foi publicada por Antenor Geraldo Zanetti Ferreira em seu livro citado, atribuída a José Fabrício das Neves. O pesquisador Napoleão Dequech, que viveu boa parte de sua vida em Concórdia-SC, garantiu ao fotógrafo Júlio Gomes que a foto era do pai de José Fabrício das Neves (Antônio Fabrício das Neves), mas não foi possível trabalhar essa informação. O homem se parece com José Fabrício, mais jovem, e a casa ao fundo pode ser a indicada como sendo o seu QG.


Referências

FERREIRA, Antenor Geraldo Zanetti. Concórdia: o rastro de sua história. Concórdia: Fundação Municipal de Cultura, 1992.

KURUDZ, Victor. 93 anos. Depoimento, julho de 1990. Concórdia/SC. Entrevistador: Antenor Geraldo Zanetti Ferreira. Equipe Resgate/Museu Histórico de Concórdia. Acervo do Museu Histórico de Concórdia. Transcrição Elza Paula Schmidt. Fita nº 4.

PIAZZA, Walter F. A colonização de Santa Catarina. 2. ed. Florianópolis: Lunardelli, 1988.

TAMBOSI, Valentin. Livro de Crônicas para a Capela de Nossa Senhora Aparecida de Engenho Velho. Paróquia N. S. do Rosário, Concórdia, Diocese de Lages. [1941]. 50f. [manuscrito]. (Fotocópia das primeiras páginas cedida por José Puntel. Concórdia, abril 2007).


terça-feira, 27 de janeiro de 2009

A religiosidade de São João Maria (6)

Festa de Santo Antão (6)








Momentos da procissão de Santo Antão. Santa Maria-RS, 11.1.2009.


Leituras

Heranças da religiosidade popular nas manifestações da cultura: A construção do sagrado no discurso dos fiéis do monge João Maria no Paraná, escrito por Karina Janz Woitowicz e Sérgio Luiz Gadini, publicado na Revista Internacional de Folkcomunicação. Vol. 1, No 5 (2005).

Através de uma perspectiva jornalística e etnográfica, os autores buscam identificar "os traços de religiosidade popular que marcam a crença em personagens considerados sagrados por fiéis em um determinado tempo e contexto histórico". Partem da trajetória dos monges João Maria de Agostini, João Maria de Jesus e José Maria, "confundidos na memória do povo paranaense como líderes que percorreram o sertão do sul do Brasil entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX". O objetivo é "compreender o modo como estas figuras místicas se inscreveram na história das cidades por onde passaram, deixando assim uma herança cultural que se manifesta através de lendas, cruzes plantadas, olhos d’água, milagres, ex-votos e estórias diversas que somam a crença religiosa à crítica social". Com base na "presença e na influência dos valores do chamado ‘catolicismo rústico’" é possível "ver e compreender parte da história muitas vezes ignorada pelos discursos oficiais e explicar determinadas marcas da identidade cultural dos paranaenses no imaginário coletivo através da comunicação popular."

"Considerações Finais

Essa série de relatos, depoimentos, informações, além das imagens, fotografias, mensagens afixadas nas grutas, olho d’água e locais de homenagem ao Monge ilustram basicamente duas questões. Em primeiro lugar, essas crenças sobrevivem à revelia ou paralelamente à presença e descaso oficial, seja por parte do Estado, das igrejas tradicionais ou mesmo da racionalidade lógica que parece predominar nos modos de ser, pensar e agir de boa parte da população brasileira, geralmente sintetizada no padrão classe média de consumo.

Em segundo lugar, a crença dessas milhares de pessoas, que de algum modo partilham e reconhecem um poder de ação mística – religiosidade para além das religiões dominantes – ao que tudo indica já existiu ou continua existindo independentemente da indiferença (descaso ou ausência) da ação dos principais espaços midiáticos. Raramente, e bem diferente de outros setores que envolvem e atraem pessoas na vida social, o cotidiano desses espaços de visitação e homenagem pública são pautados ou sequer agendados pela grande maioria dos jornais,emissoras de rádio, internet ou televisão, seja em nível local das cidades onde esses locais recebem visitas de devotos de diferentes regiões e tampouco da mídia regional ou estadual.

Em terceiro lugar, essas manifestações de crenças religiosas, expressas em comportamentos e ações de devoção a uma das figuras que historicamente foi desconsiderada, quando não visivelmente desprezada pelos poderes oficiais instituídos, indica a presença viva de manifestações próprias da cultura popular que se relacionam com o sagrado, de modo sincrético, e que, ao mesmo tempo, legitimam essas expressões folkcomunicacionais, espontâneas, sem controle social prévio e, pelo que se pode verificar no que diz respeito às crenças no Monge Maria, também passam a estabelecer relações próprias e individuais de comunicação sustentadas na lógica da representação do que aqui se denomina de 'religiosidade rústica'”. Confira a íntegra do texto.
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Outro trabalho importante é o de Gilberto Tomazi, mestre em Ciências da Religião (PUC-SP), intitulado A mensagem de "São" João Maria: e sua ressignificação na experiência religiosa do Contestado. Tomazi constata que "depois de quase um século, a comunidade cabocla ainda encontra nele um sentido, uma inspiração e uma mística que lhe permitem viver no presente de maneira solidária, enfrentando a dura realidade em que se encontra, confiante em dias melhores". Confira a síntese da dissertação defendida em maio de 2005, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP, com o título A mística do Contestado: a mensagem de João Maria na experiência religiosa do Contestado e dos seus descendentes, sob a orientação do professor José J. Queiroz. Fonte: Revista Último Andar, São Paulo, (14), 109-126, jun., 2006.


Cenas da 161ª Festa de Santo Antão (Santa Maria-RS).




segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

José Fabrício das Neves (42)

Antônio Martins Fabrício das Neves mostra a placa usada em desfiles
no Irani-SC. Foto: Dario de Almeida Prado. Acervo: Sérgio Rubin (Canga).


O envolvimento político (*)

Dois processos eleitorais confirmam o envolvimento de José Fabrício e mostram um pouco dos procedimentos da época. No dia 7 de março de 1920, por exemplo, acontece a eleição para a escolha de dois conselheiros (vereadores) e dois suplentes, e dois juízes de Paz para o distrito de Irani, realizada na “antiga residência de José Fabrício das Neves”. Foram mesários José Maria Sutil, João Cirilo Nery, Pedro Rodrigues de Oliveira, Ireno Pereira de Souza e Maurílio Dias Baptista (que presidiu o pleito, secretariado por Sutil). João Cirilo Nery, como veremos a seguir, era ligado ao coronel Fabrício. Thomaz Fabrício das Neves, irmão de José, foi eleito juiz de paz com 31 votos (RIBEIRO, 2004, p. 37-38).

Na eleição de 1922, Victor Rauen se candidatou à superintendência, desafiando o esquema ligado a Hercílio Luz. José Waldomiro Silva foi destacado por Rauen para acompanhar o processo eleitoral em Irani, para onde se dirigiu, tendo chegado cedo ao local de votação, “bem antes da hora marcada para o início dos trabalhos”. Para sua surpresa, a eleição “já estava quase em seu final, apesar de não ser nem nove horas”. Ele apresentou as credenciais e acompanhou o restante dos procedimentos. “Um deles lia o nome do eleitor e outro escrevia o nome do mesmo eleitor”, descreve. “Às vezes comentavam: este é fulano que parece já morreu lá pelo Paraná, entretanto vai dar seu votinho, pois sempre foi bom companheiro.” O resultado final deu vitória a Rauen, indicando a existência de articulações entre o vitorioso e as lideranças de Irani. Outras localidades também ajudaram a derrotar os “palmerianos” e Bittencourt. (SILVA, 1987, p. 44-45).

Rauen tomou posse em 1º de janeiro de 1923, nomeando em seguida os intendentes dos distritos de Limeira, São Bento, Hercilópolis, Catanduvas, Irani (Alexandre Telles da Rocha), Bela Vista e Abelardo Luz. Os primeiros escrivões são também indicados e no Irani assumiu Henrique Krapke. Outra providência do novo superintendente foi iniciar o lançamento e a cobrança dos impostos, indicando Waldomiro Silva para realizar esse serviço no município, além de supervisionar os trabalhos de abertura e conservação de estradas (picadas) e picadões (SILVA, 1987, p. 46).


No Irani

Um dos distritos visitados foi Irani. Quando esteve a primeira vez no povoado, Silva penoitara na casa de “um morador de nome Fabrício, pois em Irani quase todo mundo tem nome de Fabrício, casa essa que ficava bem perto do cemitério dos jagunços e soldados”, mortos em 1912 (SILVA, 1987, p. 44). Ao retornar, foi se hospedar na mesma casa, esclarecendo se tratar de Thomaz Fabrício das Neves, “irmão do caudilho José Fabrício das Neves, porém sendo este, homem pacífico”, assinala. Thomaz morava na localidade de Banhado Grande “exatamente onde se feriu o combate dos jagunços em 1912”. Nos fundos da casa, “onde me hospedei, ainda existia um cercado de madeiras (ripas)” – a sepultura de José Maria (SILVA, 1987, p. 46-47).

O coletor de impostos deixou a cidade, satisfeito com os resultados, destacando que “apesar da fama dos caboclos, muitos ainda remanescentes dos jagunços, sempre fui bem recebido e acatado, encontrando boa colaboração por parte de todos”. E destaca a figura de Guilhermino Lemos, “homem valente e temido, que muito me ajudou na abertura de estradas (picadas)”, morador de Sertãozinho, “nos fundos de Irani”. Silva foi embora com cerca de 200 mil réis, “quase que exclusivamente de imposto de fogão que custava cinco mil réis, de cada morador” (SILVA, 1987, p. 47).


Rumo a "zona perigosa"

O passo seguinte do novo superintendente de Catanduva, que então era a sede do futuro município de Joaçaba (instalada em Limeira), foi percorrer todos os distritos sob sua jurisdição – Limeira, São Bento, Hercilópolis, Catanduvas, Irani, Bela Vista e Abelardo Luz. Mas surgiu um problema com as localidades nas margens do rio Uruguai. “Para os lados da atual Concórdia, não se podia ir porque era considerada zona perigosa, onde tinha seus domínios o sr. José Fabrício das Neves, que até então dominava toda a região correspondente ao atual município de Concórdia e partes (fundos) de Iraní etc”, salienta Silva (1987, p. 50).

Rauen só viajou a Concórdia e Itá depois de um “prévio entendimento com o caudilho José Fabrício das Neves”, acompanhado do fiscal-geral de tributos José Waldomiro Silva, e um filho do superintendente, Jonas, com cerca de 9 anos de idade, “e um preto para cuidar dos animais de montaria”. Deixando Catanduva, passaram por Palmital e alcançaram Barra Seca, na margem do rio Jacutinga, “onde pernoitamos no paiol de milho do único colono morando naquelas redondezas” (SILVA, 1987, p. 51).

No dia seguinte, o grupo seguiu caminho “por aquele sertão bruto”, passando “no lugar denominado Queimados, atual cidade de Concórdia, onde morava o caboclo João Cerilo Nery, com uma bodega de cachaça e rapadura” e outras mercadorias. O grupo foi pernoitar em Fragosos, “onde existiam duas ou três casas de melhor aparência, construídas de madeira serrada e pintadas de cal branco”. Ao chegar no local previsto para o encontro, mas não indicado pelo autor, se depararam com José Fabrício, “acompanhado de uns oito ou dez companheiros (seu estado-maior), todos montados e formados em duas alas, na frente da casa”. Fabrício e seus homens apearam com a chegada da comitiva oficial, “o mesmo fazendo nós, e em seguida houve os cumprimentos e apresentações”, salienta Silva (1987, p. 52), “tudo com muita cerimônia, pois o Sr. Fabrício, apesar da fama, se mostrou muito amável para com o Sr. Victor Rauen”.

O grupo ficou conversando “até alta noite”, quando Rauen acertou o “’modus-vivendi’, daquela data em diante, com o Sr. Fabrício, inclusive quanto aos trabalhos de abertura das estradas (picadas) na região, etc”. No dia seguinte, acompanhado de um vaqueano cedido por Fabrício, a comitiva se deslocou para Itá, “passando pelo lugar denominado Engenho Velho que, ao que se dizia, pertencia ao sr. José Fabrício” (SILVA, 1987, p. 52).


"Auréola mística"

O diálogo estabelecido entre os dois homens é outra indicação da adequação do caudilho à nova ordem, alinhando-se com a oposição que vai desembocar na Aliança Liberal e na Revolução de 1930. “Ao chegarmos em Itá fomos recebidos com honras de chefe de estado”, observa Silva, “ou mais ainda, pois era a primeira autoridade constituída que visitava aqueles fundos de sertão”. Nesse povoado, Silva visitou uma “casa de comércio (bodega)”, pertencente a Fabrício das Neves e “gerenciada por um seu filho de nome Vicente”, visando a cobrança do imposto. “Ao que nos informaram, foi o primeiro pago pelo Sr. Fabrício, até então” (SILVA, 1987, p. 52-53).

O retorno de Rauen foi motivo de festa. “Fomos homenageados em Catanduva pelas autoridades”, lembra Silva, incluindo o juiz de Direito Francisco de Almeida Cardozo, o promotor público Edgar de Lima Pedreira e o delegado de polícia Luciano Luiz dos Passos, entre outros. O ato se deu no hotel de Jesuíno de Oliveira, “onde o sr. Victor Rauen foi considerado grande herói por ter entrado no reduto do caudilho Fabrício das Neves e voltado com vida” (SILVA, 1987, p. 53).

Segundo Ferreira (1992, p. 61), “as rixas, as lutas, os confrontos, acabaram por espalhar a fama de José Fabrício das Neves”, como valente e disposto na busca por seus objetivos. Fama essa amplificada “pelos boatos que atribuíam ao coronel proezas que faziam tremer os caboclos mais arrojados”, levando-os a se estabelecer em outras regiões. Munido de uma “auréola mística, emprestada por seus companheiros, arrebanhava também rivais e inimigos que sempre andavam prevenidos”, ainda de acordo com o autor citado. Já circulava a lenda de que mandava queimar os adversários ainda vivos, o que teria originado o antigo nome de Queimados ao atual município de Concórdia, fato discutido anteriormente.

Itá-SC. Foto em 22 de agosto de 2008.

Referências

FERREIRA, Antenor Geraldo Zanetti. Concórdia: o rastro de sua história. Concórdia: Fundação Municipal de Cultura, 1992.

RIBEIRO, Elenita. Irani pós-combate. 2004. Monografia (Graduação) - Curso de História. Universidade do Contestado (UnC), Concórdia, 2004.

SILVA, José Waldomiro. O Oeste Catarinens: memórias de um pioneiro. Florianópolis: Edição do Autor, 1987.


(*) O texto acima e o anterior integram (com pequenas alterações) o livro O mato do tigre e o campo do gato - José Fabrício das Neves e o Combate do Irani. Florianópolis: Insular, 2007.

domingo, 25 de janeiro de 2009

A religiosidade de São João Maria (5)

Festa de Santo Antão (5ª parte)

Imagens da devoção a Santo Antão.

ERMIDA

Interior da ermida de Santo Antão no alto do cerro.



Cartão distribuído na Capela de Santo Antão (frente e verso)


"Santinho" que circulou na última Festa de Santo Antão.

Capa do livro do padre Vicente Pillon, que pesquisou as lendas em torno do monge João Maria de Agostini, as águas, as aranhas e cobras gigantes que habitam a ermida no alto do cerro, as festas do padroeiro. O livro não contém referências quanto a data de publicação e editora. Alguns exemplares ainda podem ser encontrados na Livraria da Mente, no calçadão de Santa Maria-RS.