sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

José Fabrício das Neves (41)

Irani-SC, 9.11.2007.


Usufruindo o adverso

José Fabrício é de um tempo em que a “coragem pessoal, a destreza e a habilidade nas lides do gado”, assim como o “cultivo generalizado dos valores ligados à violência”, favorecem o “senso de independência e necessidades criadas por um sistema social e econômico que implicava num gênero de vida incompatível com uma subordinação disciplinada”, conforme Duglas Monteiro (1972, p. 26). Isso está ligado, prossegue o autor, ao “reconhecimento de subordinadores e de subordinados como pessoas integrais, favorecendo um relacionamento difuso e não, específico entre agentes sociais colocados em posições hierarquicamente superpostas”.

Vivia numa época onde a ausência do Estado fazia com que certos homens assumissem a responsabilidade pela manutenção da ordem, como foi o caso de José Fabrício, conforme alguns detalhes já observados. Além de estar com a cabeça a prêmio, o personagem começa a sentir os efeitos das mudanças que se operam em todo o seu universo, mas consegue apreender os sinais dessas mudanças e se organiza para adotá-los. Entre eles, a chegada do Estado, tendo em vista a conceituação que autores como Sérgio Adorno (2002), utiliza em seus trabalhos. “O Estado moderno constitui-se como centro que detém o monopólio quer da soberania jurídico-política quer da violência física legítima”, destaca, processo que resultou na “progressiva extinção dos diversos núcleos beligerantes que caracterizaram a fragmentação do poder na idade média”.

Trabalhando um conceito desenvolvido por Max Webber, Adorno considera que o estado envolve, pelo menos, três componentes essenciais: monopólio legítimo da violência, dominação e território. "O estado moderno é justamente a comunidade política que expropria dos particulares o direito de recorrer à violência como forma de resolução de seus conflitos", explica. "Na sociedade moderna, não há [...] qualquer outro grupo particular ou comunidade humana com ‘direito’ ao recurso à violência como forma de resolução de conflitos nas relações interpessoais ou intersubjetivas, ou ainda nas relações entre os cidadãos e o estado" (ADORNO, 2002, p. 8).

Mas existem limites a essa violência, condição para que adquira legitimidade. “A violência legítima é justamente aquela cujos fins – assegurar a soberania de um Estado-Nação ou a unidade ameaçada de uma sociedade – obedece aos ditames legais”, ou seja, o “fundamento da legitimidade da violência” repousa “na lei e em estatutos legais”, segundo Adorno (2002, p. 8). Simon Schwartzman, que também estuda o assunto, assinala que “um dos propósitos dos Estados modernos tem sido o de abolir o uso privado da violência e garantir seu monopólio para a autoridade pública” (SCHWARTZMAN, 1980).

Por outro lado o “impacto da penetração de recursos vultosos, quanto a pessoal ocupado e capitais investidos e inovadores quanto a tecnologia empregada e as soluções organizatórias”, salienta Monteiro (1972, p. 28), alterou “de modo substancial o gênero de vida costumeiro” na região. Élio Serpa (1999, p. 18), enfatiza que naquele momento de consolidação do regime republicano, “as elites brasileiras queriam modernizar o Brasil e as pessoas”, o que significava a “introdução de mão-de-obra livre e, para isso, estimulavam a vinda de imigrantes alemães e italianos”. Significava “construir estrada de ferro, implantar iluminação pública para as cidades, serviços de telefonia”, entre outras iniciativas. As pessoas deviam “sentar-se à mesa, comer de garfo e faca, saber falar corretamente a língua portuguesa, divertir-se como homens e mulheres faziam nas cidades – em clubes, dançando valsas e outras danças”, salienta o mesmo autor. “E seguir normas higiênicas determinadas pelos médicos”.


Descendente de José Fabrício, o músico Vicente Telles, neto do coronel Alexandre Telles da Rocha, primeiro intendente de Irani na década de 1920 e fazendeiro na região, lembra o episódio envolvendo o antepassado e Miguel Fabrício das Neves, que pode não ter ocorrido exatamente como ele conta, mas revela a existência de um conflito familiar que, se permanece na memória, certamente teve um forte impacto. Miguel, então com longas barbas e tio de José Fabrício, teria aconselhado o sobrinho a parar com as correrias, sossegar um pouco. Os tempos estavam mudando e certas atitudes passavam a ser condenadas. O caudilho ouviu os conselhos, sempre calado, até reagir - “segurou o Miguel, tirou a barba, deu um banho numa bica de monjolo e o soltou”, lembra Telles (2007). O episódio pode ter dado origem a uma divergência interna na família Fabrício das Neves, contribuindo para denegrir a imagem de José Fabrício, conforme referido anteriormente.


A chegada dos novos tempos, entretanto, não foram suficientes para arrefecer o ânimo e a disposição de José Fabrício. Quando chegar a hora, ele vai negociar com as empresas colonizadoras; estabelecer relações amistosas com as primeiras autoridades do novo município de Cruzeiro; utilizar na medida do possível o aparato estatal; e participar do processo político-partidário. Em outras palavras, ele usa os tentáculos do Estado com habilidade e a seu favor, assumindo as características de um “coronel”, cujo conceito vamos discutir no capítulo seguinte.

Com a assinatura do “Acordo” entre o Paraná e Santa Catarina em relação às terras contestadas, e a passagem de todo o lado oeste do rio do Peixe para a jurisdição catarinense, Fabrício se sentiu um pouco mais aliviado, embora a presença dos tentáculos do aparelho de Estado se tornem mais presentes. Estava aliviado por seus “domínios” passarem a pertencer a Santa Catarina e “não tardou que o coronel percebesse que os serviços de colonização seriam inevitáveis e necessários”, observa Antenor Geraldo Zanetti Ferreira. “Ele mesmo já se dizia cansado de lutas e queria viver sossegado com sua mulher”, assinala, “em algum lugar da região do rio Engano”, onde queria “morrer comendo carne de anta”, como “costumava dizer” em tom de brincadeira (FERREIRA, 1992, p. 62-63).

É preciso ter em mente que após o “Acordo” de 1916, o então governador Felippe Schmidt assinou a lei nº 1.147, de 25 de agosto do mesmo ano, dividindo a região incorporada em quatro municípios: Mafra, Porto União, Chapecó e Cruzeiro, prevendo a implantação de sedes com a categoria de vila (BELLANI, 1989). Assim, as regiões dos atuais municípios de Concórdia e Iraní, entre outros, ficam subordinados ao novo município de Cruzeiro, cuja sede inicial foi em Limeira (atual Joaçaba), nas margens da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande. Através da resolução nº 934 do Governo do Estado, foram nomeadas as primeiras autoridades (QUEIROZ, 1967, p. 8).

No dia 11 de outubro (1917) foi nomeado o primeiro juiz de direito da Comarca, Aprígio Gomes de Melo Cavalcanti, e no dia 18 do mesmo mês o promotor público Claribalte Galvão. Em 20 de agosto de 1919 foi fixada a sede definitiva de Cruzeiro, transferida de Limeira (Joaçaba) para Catanduva (singular), com o nome de Cruzeiro, situação que durou até março de 1926, quando a lei estadual nº 1948 (8 de março) elevou o povoado de Limeira para vila, voltando a sediar o município atual de Joaçaba (QUEIROZ, 1967, p. 8-9).

No caso das primeiras autoridades nas regiões dos atuais municípios de Concórdia, Irani e outros, elas precisam ter o aval do coronel, pois em caso contrário ficariam impedidas de exercer seus papéis. “Ele botava esses comissário, inspetor de quarteirão, e dava as ordens: crime bárbaro não tem cadeia, vocês pegando pode matar”, observa José Gomes. “Foi onde mataram dois caras que mataram um rapazinho nos gramados de Irani”. De acordo com ele, Fabrício mantinha sim relações com algumas autoridades, “alguma coisa ele tinha, porque eles ordenavam” e Fabrício em “grande parte ele fazia por conta dele mesmo”. Caso fosse “executar pelas ordens que recebia do governo, muitos eles não podia matar, e tinha gente que perseguia ele, então ele pegava e matava mesmo”, acrescenta Gomes, que passou quase toda a vida na região de Concórdia-SC e hoje reside em Colombo-PR, nas proximidades de Curitiba.


O período que se inicia nos interessa de perto, tendo em vista o paulatino envolvimento de José Fabrício das Neves com a política local, embora as referências sejam escassas, mas que apontam para uma aproximação do caudilho com as autoridades e o progressivo envolvimento no quadro que se cria. No plano estadual, o Partido Republicano Catarinense (PRC), único existente, exercia o domínio do Executivo estadual desde 1891, com duas grandes lideranças: Lauro Müller e Hercílio Luz. Segundo Carlos Humberto Corrêa (1984, p. 18), o PRC era, “na verdade, aqueles dois nomes; e os mesmos, por sua vez, juntos, ou separadamente, eram o Partido”.

Assim, desde o surgimento da República, a cena político-partidária não se caracterizou “pela luta pelo poder entre os dois líderes estaduais”, pois enquanto Müller atuava mais no plano federal, Hercílio cuidava das questões regionais. “Afora as divergências de Hercílio com Felipe Schmidt, no primeiro governo deste, e com Gustavo Richard, o processo político catarinense foi de um continuísmo oligárquico”, salienta Corrêa (1984, p. 25-26), onde “as preocupações maiores estavam em deixar no poder os membros de um Partido único, unidos entre si por laços consangüíneos”.

Na região do planalto, incluindo a região recém incorporada com o "Acordo", a cidade de Lages “tinha o título de ‘capital política’ de Santa Catarina, pela tradição de seus representantes e laços efetivos com o Rio Grande do Sul”, segundo Carlos Humberto Corrêa (1984, p. 27). Desde a proclamação da República, dois lageanos haviam governado o Estado, Vidal Ramos (1910-1914) e Felipe Schmidt (1914-1918). É onde surge também a primeira oposição dentro do Partido Republicano Catarinense (PRC), sobretudo depois que Hercílio Luz suplantou em definitivo a liderança de Lauro Müller, oposição essa liderada por Vidal Ramos e seu filho Nereu Ramos – grupo que mais tarde vai apoiar a Revolução de 1930, constituindo as bases da futura Aliança Liberal.

As informações disponíveis indicam que, lá na ponta, José Fabrício se ligou a esse grupo, fazendo oposição ao superintendente (prefeito) indicado Otávio Manoel Bittencourt. Este, por sua vez, era apoiado pelo coronel Antônio Inácio de Araújo Pimpão (Duca Pimpão), ligado ao esquema político dominante em Palmas-PR antes do “Acordo”, por isso chamados por José Waldomiro Silva (1987, p. 44) de “palmerianos”, residentes no então distrito de Hercilópolis. Duca Pimpão planejava transferir a sede do município para Hercilópolis e para tanto “mandou medir uma grande área de uma de suas fazendas (Cruz Alta)”, com esse objetivo. Certa ocasião, seqüestrou os arquivos da superintendência (Catanduva) e os levou a Hercilópolis (SILVA, 1987, p. 48-49).

O grupo de oposição se articula em torno de Victor Rauen, integrado por Luiz Giorno (Limeira) e Henrique Rupp Júnior, incompatibilizados ambos com o governador Hercílio Luz, devido ao apoio à desastrada administração de Manoel Bittencourt. Certa ocasião, em 1921, os irmãos Victor e Eurico Rauen se deslocavam de Herval para a atual Luzerna, quando foram alvos de uma emboscada, com disparos de Winchester calibre 44. Os tiros passaram de raspão nas costas dos dois. Segundo Silva (1987, p. 38-9), os suspeitos foram presos, mas o superintendente Bittencourt, “homem violento e arbitrário”, tentou “soltar seus dois amigos” atacando o quartel da Polícia em Herval, onde estavam detidos. Frustrada a tentativa, Bittencourt tivera que fugir.


Referências

ADORNO, Sérgio. Monopólio Estatal da Violência na Sociedade Brasileira Contemporânea. In: Miceli, S. et al. (Org.). O que ler na ciência social brasileira 1970-2002. São Paulo: Sumaré, v. IV, p. 267-307, 2002. Disponível em: . Acesso em: 25 maio 2007.

BELLANI, Eli Maria. Município de Chapecó: legislação e evidências. 1917-1931. Cadernos do Centro de Organização da Memórias Sócio-Cultural do Oeste de Santa Catarina (CEOM). Edição Especial. Série: Documento 1. Chapecó: Fundeste, Ano 4, p. 62-63, ago. 1989.

CORRÊA, Carlos Humberto. Um Estado entre duas Repúblicas: a revolução de trinta e a política em Santa Catarina. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1984.

FERREIRA, Antenor Geraldo Zanetti. Concórdia: o rastro de sua história. Concórdia: Fundação Municipal de Cultura, 1992.

MONTEIRO, Duglas Teixeira. Os errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do Contestado. 1972. 283p. Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo, São Paulo, 1972.

QUEIROZ, Alexandre Muniz de. Álbum comemorativo do centenário do município de Joaçaba. Joaçaba: IP-Paraná, 1967.

SCHWARTZMAN, Simon. Da violência de nossos dias. Dados - Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro. v. 23, n. 3, p. 365-70, 1980. Disponível em: http://www.schwartzman.org.br/simon/violencia.htm. Acesso em: 13 out. 2006.

SILVA, José Waldomiro. O Oeste Catarinens: memórias de um pioneiro. Florianópolis: Edição do Autor, 1987.




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