sábado, 22 de novembro de 2008

A caminho de Pinhão (PR)

Em busca dos descendentes
de José Fabrício das Neves


Represa da COPEL no rio Iguaçu, entre Bituruna e Pinhão (PR).


Beira da estrada.

Lago na região central de Pinhão (PR)


O Sol se põe em Pinhão.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

José Fabrício das Neves (14)


Ao encontro de Gualberto

Quando soube da aproximação da força do coronel João Gualberto, o coronel da Guarda Nacional e superintendente de Palmas Domingos Soares foi a seu encontro na fazenda Horizonte, onde o encontrou no dia 18 de outubro de 1912, uma semana antes do combate do Banhado Grande do Irani. Domingos auxiliou o oficial na aquisição de animais de carga e montaria e na localização exata de José Maria, “indicando-lhe vaqueanos da região para guias da tropa”. (SOUZA, 1987, p. 106) Para uma expedição de reconhecimento enviada imediatamente aos campos do Irani, algumas praças tiveram que seguir montadas em “seis burrinhos e quatro cavalos mal arreados que o coronel Soares colocou a disposição do comando”, segundo o tenente João Busse. (ROSA FILHO, 1998, s/p)

Domingos Soares seguiu com o piquete comandado por Busse, acompanhado do comissário de polícia de Palmas Domingos Nascimento e dos civis Valgas, João Pedroso Camargo (João Meia Língua), Chico Bento, os tropeiros João Luiz e Francisco Fernandes e um chamado Roque. No dia mesmo dia 18, na estância Alegrete, a 11 léguas de Irani [17,7 km], estavam dois “emissários” de José Maria a procura do coronel Domingos Soares – João Varela, pequeno fazendeiro, e José Júlio Farrapo, arrendatário da Fazenda Irani, ambos residentes na região. (SOUZA, 1987, p. 107). Depois de revelar que José Maria sabia de toda a movimentação das tropas, foram detidos e submetidos a interrogatório pelo tenente Busse que, acrescentando dados obtidos com Ernesto Rupp, elaborou relatório encaminhado ao comandante. (ROSA FILHO, 1992, s/p)

Nesse mesmo documento, segundo o autor citado, Busse informa sobre o convite feito por José Maria a Domingos Soares para que fosse conferenciar com ele no Faxinal do Irani, onde estava acampado. “Estes dois homens ficarão em nosso poder até recebermos novas ordens”, destacou Busse. José Maria estava acompanhado por 40 homens armados de Winchesters e dispostos a defendê-lo “a todo transe”, além de mulheres e crianças. Todos os moradores “das redondezas do Irani acham-se fanatizados por José Maria, tendo ele declarado ao senhor Rupp que se o atacarem, resistirá”.

Um detalhe crucial: “Os enviados do monge dizem que ele deseja muito conferenciar com o senhor doutor chefe de polícia ou com o senhor em qualquer ponto e este fato pode servir para pegá-lo de surpresa”. José Maria afirma conhecer o chefe de polícia e “declara que deseja resolver pacificamente este fato; que não passa tudo isso de uma intriga que ele, monge, teve com o coronel Albuquerque, de Curitibanos”. Mas que “absolutamente não quer hostilizar o Paraná que nenhum mal lhe fez”. (ROSA FILHO, 1992, s/p)

João Gualberto ignorou tudo isso. Ficara acampado a poucos quilômetros do Banhado Grande, na sede da Fazenda Irani, onde conferenciou com os fazendeiros Juca Pimpão e Tonico Pinho. Ouviu os caboclos Varella e Farrapo, para se certificar das informações anteriormente transmitidas pelo tenente Busse, e chamou os oficiais para uma reunião, inclusive o coronel Domingos Soares. Nessa ocasião, 20 de outubro de 1912, anunciou a disposição de atacar o “reduto” na manhã do dia seguinte. Soares pediu um prazo, disse que ia conferenciar com José Maria. João Gualberto aceitou e lá se foi o coronel de Palmas em direção às terras de Thomaz Fabrício das Neves.

Cabe esclarecer que Varella e Farrapo haviam procurado o reduto do Irani, onde conversaram com José Maria, aconselhando a dispersão do reduto. O monge os ouviu com paciência, explicou os motivos de sua presença e solicitou que eles procurassem o coronel Domingos Soares, pedindo que o mesmo o procurasse. Numa de suas Décimas, Antônio Martins Fabrício das Neves os chama de “metidos”. Na verdade eles foram ao enviados ao local por um outro personagem, Octávio Marcondes, sobre quem falaremos adiante.


Perfil do cel Domingos Soares

Nascido no dia 16 de abril de 1852 em Guarapuava-PR, Domingos era filho de Joaquim Mendes de Souza, um dos participantes da expedição de exploração dos campos de Palmas, chefiada por José Ferreira dos Santos. Sua mãe, Cesarina Antônia de Jesus, era filha de outro pioneiro de Palmas, o capitão Francisco Antônio de Araújo. As informações foram apuradas por Aurora Fabrício das Neves Tortelli, residente no atual município de Coronel Domingos Soares-PR, antigo distrito de Palmas com o nome de Refúgio. Uma das líderes do movimento de emancipação do então distrito, Aurora destaca a liderança política do patrono do município: superintendente (prefeito) de Palmas de 1912 a 1916 e de 1924 a 1928, foi deputado estadual entre 1914 e 1918. “Esse nome Retiro foi dado pelos tropeiros, que pousavam aqui, sendo recebidos pelo coronel Domingos Soares com o charque aquecido e o chimarrão”, salienta.

Criado na fazenda São Joaquim, que seu pai adquiriu em Palmas, se casou com Maria Lourença de Araújo, estabelecendo-se na fazenda Bom Sucesso, com área de 1.800 alqueires, equivalente a aproximadamente 4,3 bilhões de m2, latifúndio característico dessa região. Enquanto seguia em direção ao Banhado Grande, no Faxinal dos Fabrícios ou Irani, deve ter pensado na ajuda que José Maria lhe dera na abertura de uma estrada entre Retiro e a Fazenda Pitangas, nos arredores de Palmas. “Usaram machados para derrubar as árvores e picaretas para abrir o caminho”, destaca Aurora Fabrício das Neves Tortelli.


No reduto do Irani

Antes de Domingos Soares montar a seguir viagem, João Gualberto acordara todos os oficiais no final da madrugada, lendo um ultimato escrito a lápis e endereçado a José Maria. Octávio Marcondes, que também seguiu para o acampamento do monge, levou consigo o documento. Chovia torrencialmente, quando Soares, Marcondes, Varella, Farrapo e Deca Cachoeira chegaram na casa de Miguel Fabrício das Neves, “situada meia légua adiante da de Thomaz Fabrício, onde antes parava o monge”. (SOUZA, 1987, p. 113) O lavrador João Pedroso de Camargo estava junto. (ROSA FILHO, 1992, s/p)

Sobre esse encontro existem duas fontes – Marcondes e Farrapo. A de Farrapo é uma entrevista dada ao jornal A República (18.11.1912), em que se baseia Marés de Souza. O grupo chegara por volta das 11 horas e o monge estaria dormindo, tendo se acordado “meio tararaca, isto é, meio tonto”, destaca o autor, que reproduz um trecho da entrevista de Farrapo ao referido jornal. Sentados numa cama, após o monge haver deixado o local para lavar o rosto, iniciaram a conversa que “reuniu o povo todo, ficando todos apertados, para ouvirem o que ia sair”, contou Farrapo.

A uma pergunta do coronel Domingos Soares sobre o que representava aquele ajuntamento, José Maria teria garantido não ter “nada com o Paraná, nem com Santa Catarina, nem com governo nenhum”. Era perseguido pelo coronel Albuquerque, “que costumava surrar gente até em cruz de cemitério atado e que caluniou ele, passando telegramas falsos, dizendo que ele gritou monarquia”. Ainda segundo Farrapo, Domingos teria feito advertências, “mostrando que aquilo era uma barbaridade”, e estaria “comprometendo aquele povo”, o povo que era dele também, “bom, e que por isso ele coronel Soares, ia até lá sem receio”.

José Maria não podia fazer uma “reunião daquela e que por isso o governo era obrigado a tomar parte” e que o pessoal fosse dispersado. “Ele monge disse que não reúne gente. Que a gente é que reunia-se para pedir remédio; que se o coronel Soares garantia que a força não batia”, iria embora com a “gente que trouxe”. Soares garantiu que não haveria perseguição e o Paraná os receberia. Nesse momento, Octávio Marcondes entregou a carta-intimação de João Gualberto e José Maria passou a ler as quatro páginas do documento. (SOUZA, 1987, p. 114-15)


A carta

Acampamento do Regimento de Segurança nos Campos do Irani, em 20 de outubro de 1912.

Senhor José Maria

Deveis comparecer a este acampamento com a maior urgência, a fim de explicardes os motivos da reunião de gente armada em torno de nossa pessoa, alarmando os habitantes desta zona e infringindo as leis do Estado e da República.

Caso não atenderdes esta intimação, que me ditam o cumprimento do dever e o sentimento de humanidade, comunico que dar-vos-ei, desde logo, franco combate e a todos que forem solidários convosco, em verdadeira guerra de extermínio, a fim de fazer voltar a esta zona do Estado o regime da ordem e da lei.

Avisai a todos que vos acompanham, que os considerarei criminosos se não comparecerdes vós ao meu acampamento a fim de evitar uma terrível desgraça.

Comunico-vos ainda, além das forças minhas que vos sitiam por várias estradas, outras expedições vos perseguem também, tornando-se dessa forma impossível a vossa fuga ou resistência no território nacional.

No caso de vossa resistência às minhas imposições, deveis retirar com urgência as mulheres e as crianças que aí estiverem.

João Gualberto Gomes de Sá Filho – Cmt do Regimento de Segurança do Paraná”. (ROSA FILHO, 1992, s/p)



As botas do coronel. Acervo do Museu Histórico Professor José Alexandre Vieira (Palmas-PR).



“Indignada soberba”

José Maria disse então que “não aceitava aquilo como parlamento; que era um desaforo carta escrita com lápis”. (SOUZA, 1987, p. 115) A narrativa de Octávio Marcondes, gerente da Fazenda Irani, usada por Rosa Filho, não se diferencia muito do que foi contado por Farrapo, um dos arrendatários da mesma fazenda. Acrescenta apenas que ao entrar no quarto em que José Maria estava, Domingos Soares teria se surpreendido “ao reconhecer na pessoa do célebre curandeiro o indivíduo de nome Boaventura que, oito meses antes, estivera na cadeia em Palmas, acusado de defloramento”, fato já discutido anteriormente. A medida que Soares falava, “viu-se rodeado de uma porção de homens, alguns bem armados, que assistiam à conferência”. (ROSA FILHO, 1992, s/p)

Após ter lido a carta, José Maria a entregou “a um indivíduo que estava perto e que embaralhou as páginas”, indo com Domingos Soares para outro quarto, onde permaneceram cerca de uma hora. Sobre o que falaram dificilmente se ficará sabendo. “Soube-se por depoimento de Domingos Soares, que, nessa conversa, José Maria sustentava sempre o seu ponto de vista”, qual seja, não iria até João Gualberto por temer maltrato. Mas garantiu que ia reunir seus homens e voltar a Santa Catarina. (ROSA FILHO, 1987, s/p) Segundo Souza (1987, p. 115), diante das garantias de Soares, José Maria teria dito: “Sim, para o senhor eu podia ir, seu coronel; mas isso eu sei que não está no senhor. Eu lhe conheço, seu coronel, para o senhor eu ia. Eu tenho oito mil homens para brigar, seu coronel”.

Anos depois, Domingos Soares teria confidenciado com seu amigo Marins Camargo, as mágoas que guardava daqueles dias. Chefe político com grande prestígio na região de Palmas, incluindo Irani, então um arraial desse município, “era amigo de todos os sertanejos”. Mas quando chegou ao Faxinal de Irani naquele dia 21 de outubro de 1912, “nem os seus afilhados, como costumavam, e é hábito no interior, vieram tomar-lhe louvado”. Ao contrário, ao saber que estava ali com a missão de fazer José Maria se apresentar a João Gualberto, “olhavam-no agressivos e com indignada soberba”. Marins relatou esses detalhes a Souza. (1987, p. 115)


Referências

ROSA FILHO, João Alves. Combate de Irani. Curitiba: Associação da Vila Militar, 1998.

SOUZA, Fredericindo Marés de. O presidente Carlos Cavalcanti e a revolta do Contestado. Curitiba: Lítero-Técnica, 1987.

TORTELLI, Aurora Fabrício das Neves. Entrevista ao autor. Município de Coronel Domingos Soares-PR, maio de 2007.



Domingos Soares e a esposa.

O depoimento de Domingos Soares

Trechos do depoimento prestado na fase de inquérito do Processo do Irani pelo coronel Domingos Soares, no dia 1ª de novembro de 1912, em Palmas-PR, 11 dias após o combate. O depoimento foi prestado ao comissário Domingos Nascimento Sobrinho, que acompanhara Soares e estivera no local do combate.


Domingos Soares estava com 60 anos de idade, era casado, fazendeiro, filho de Joaquim Mendes de Souza, natural e residente em Palmas [outras fontes indicam seu nascimento em Guarapuava-PR], sabendo ler e escrever.

No dia 14 de outubro de 1912, recebera um telegrama do Secretário do Interior do Paraná, onde comunicava haver seguido para Palmas o Regimento de Segurança e o desembargador Chefe de Polícia daquele Estado; o Secretário determinara que Soares prestasse ajuda; acompanhado de alguns rapazes, seguiu “até a entrada do mato”, onde encontrou um piquete de cavalaria com João Gualberto, no dia 16.

Foram até a casa de Tonico Branco, onde o Regimento acampou. Soares teve uma “conferência particular” com João Gualberto, “da qual ficou combinado” que Soares seguiria diretamente ao Irani onde o monge estava acampado. Seguiria acompanhado por praças da cavalaria e infantaria. Depois disso chegou o desembargador Chefe de Polícia; disse que toda a força devia seguir ao Irani, toda montada. Como não foi possível obter cavalos e arreios para todos, seguiu um piquete de 20 cavaleiros visando um reconhecimento do local e das forças de José Maria.

No dia 17, ao meio dia, a pedido do Chefe de Polícia e de Gualberto, Soares seguiu com o piquete. Missão: “conseguir amigavelmente a dispersão de um grande grupo de fanáticos que se acham ao lado do monge José Maria, cuja atitude era até então ignorada”. No caminho ele soube que 200 e tantos homens acompanhavam o monge, mandando a informação ao Chefe de Polícia e ao comandante.

Dia 18. O comissário Nascimento se adiantou e foi à casa de Octávio Marcondes “a fim de convidar este para acompanhá-lo na diligência”; Octávio seguiu com eles. Acamparam com o piquete no rio das Antas; meia hora depois apareceu um próprio de João Gualberto, “que já se achava no Alegrete, ordenando ao comandante do piquete que esperasse por ele [...] no lugar em que o próprio o alcançasse”; como esse local não era próprio para a permanência dele e da força, Soares foi acampar cerca de meia légua adiante, em São João, “onde havia recursos para tudo”; chegaram ali às 8 horas do dia 19, onde aguardou a chegada de João Gualberto.

Quando a tropa chegou, Gualberto e Soares “conferenciam particularmente”; Soares expôs tudo quanto sabia e lhe parecia necessário fazer-se, ficando então acertado que Soares e Octávio Marcondes, João Varela, José Júlio Farrapo e Deca Cachoeira, iriam no dia seguinte ao acampamento do monge, para ver “se este vinha a presença” do coronel comandante. No dia seguinte, ao partir para o acampamento do monge, João Gualberto encarregou Octávio de entregar uma carta de intimação, observando que “a referida carta só seria entregue, caso o monge” não aceitasse o convite para ir ter com ele.

Às 10 horas do dia 21, Soares e os demais chegaram ao acampamento e encontraram o monge num quarto da casa de Miguel Fabrício, “ainda deitado”. Foi então que Soares reconheceu no monge o cidadão “Boa Ventura” que meses antes fora preso por defloramento em Palmas. Ao expor sua missão ao monge, se viu “cercado de uma porção de homens, alguns bem armados, entre eles Miguel Fabrício, Miguel Fragoso [...], José Fabrício, José Felisberto” e outros de cujo nome não sabe precisar.

Após fazer as ponderações a José Maria, ouviu do monge que não iria a presença de João Gualberto, “porque ele monge nada tinha com o Paraná”, não sabendo motivo da perseguição. Disse o monge que “toda a questão era com o cel Albuquerque em Curitibanos, no Estado de Santa Catarina”; Soares fez ver ao monge que “o Governo do Paraná não o perseguia”, mas cumpria com seu dever “não consentindo reuniões ilícitas em qualquer ponto do Estado”.

Depois disso Soares fez sinal a Octávio para que entregasse ao monge “a missiva de que era portador”; Octávio entregou a carta nas mãos do monge. “Olha coronel Soares”, teria dito José Maria, “recebo aqui uma intimação do comandante exigindo a minha presença no seu acampamento o que não farei receiando ser maltratado”. Soares argumentou que “ele monge, seria bem tratado, pois que o coronel João Gualberto era um homem muito delicado”. Não adiantou. O monge mantinha o receio. Pediu apenas garantia para retornar a Santa Catarina. Soares garantiu, mas não acreditava que fosse fazer isso. Haveria um plano que Soares não descobriu qual. Tentou isso numa “conferência reservada” com José Maria.

Antes, entretanto, Soares conferenciou com Miguel Fragoso e Miguel Fabrício, “aconselhando a estes que deviam abandonar o monge e dissolver a massa de povo que ali estava. Declarou também quem era o indivíduo que ali estava intitulado monge”. Fragoso disse a Soares que não tinha nada há ver com o monge, que “ele, Fragoso, não fazia parte do grupo, não obstante ter sido chamado pelo monge já por três vezes”, estando ali para se encontrar com o coronel de Palmas.

Depois de Soares haver falado, Fragoso e Miguel Fabrício “se comprometeram em fazer debandar o povo moradores no lugar e que se achavam ao lado do monge”. Disseram a Soares que José Maria pretendia sair dali e se dirigir a Laranjeiras, em Guarapuava.

Depois dessa conversa o monge entrou no quarto em que Soares se achava, pedindo um prazo de 24 horas para chegar a Santa Catarina. Soares aceitou, por já saber do plano de José Maria. Quando o monge se retirava do quarto, apareceu José Fabrício “em atitude agressiva, dizendo não ser fanático e que se estava ali era para observar os atos do monge, verificando se ele cometia [...] e violava famílias”. Soares “fez ver que naquele sentido não precisava abonar porquanto o intitulado monge era conhecido e já tinha estado na cadeia desta cidade, por ato de defloramento, percebendo o respondente que José Fabrício ouvia suas palavras com [ilegível], continuando sempre em atitude ameaçadora, em virtude do que o respondente convidando seus companheiros tratou de se retirar imediatamente dali”, retornando ao acampamento de JG, onde chegou por volta das 17 horas. Contou a João Gualberto “tudo quanto observou no acampamento do monge, o que foi também confirmado pelos seus companheiros”.

Á noite, quando estava em sua barraca, acompanhado de Octávio Marcondes, chamaram o coronel Gualberto e “reservadamente fizeram ver a este que o respondente prometeu garantir a passagem do monge para o Estado de Santa Catarina, devido ter o respondente descoberto o plano de fuga que seria feito em 24 horas [...]”. [O plano era se deslocar até Laranjeiras], “...passando ele pela Re[...] e Jardim desta Comarca, onde facilmente o monge seria capturado, tendo nessa ocasião o coronel João Gualberto declarado ao respondente que na madrugada seguinte atacaria o acampamento do monge, pois que disto já havia dado comunicação ao Presidente do Estado, que se assim não procedesse ele Gualberto se consideraria desmoralizado perante a Nação Brasileira”.

Na seqüência, Soares “fez ver ao coronel João Gualberto que com a força que dispunha naquela ocasião não convinha atacar o acampamento do monge, visto ter força superior a dele Gualberto e mesmo porque o monge se achava bem localizado”. Insistiu em dissuadi-lo de iniciar o ataque e “não conseguindo, aconselhou que ao menos esperasse a chegada do reforço que já havia pedido”. Octávio fez a Gualberto “idênticas ponderações, às quais o coronel Gualberto não atendeu e às três horas da madrugada ocasião em que o coronel João Gualberto preparava-se para marchar em direção ao acampamento do monge”, Soares voltou a insistir na inconveniência do ataque. Não foi ouvido. Soares disse que não o acompanharia. Descreveu a topografia do terreno “por onde este devia transitar e o trecho onde o mesmo devia ter todo o cuidado para evitar qualquer traição que poderia ser feita por gente do monge”.

Uma vez “posto o pessoal em marcha”, Soares acompanhou João Gualberto até “uma encruzilhada que fica distante do lugar onde se deu o combate, légua e meia, mais ou menos”. Na seqüência se dirigiu com Octávio para o lugar “Toldo Velho”, onde ficaram até por volta das 11 horas, quando foram para a casa de Manoel Isack, em Caçadorzinho, “de onde naquela madrugada haviam levantado acampamento”. Foi quando Soares soube “que João Gualberto e seu pessoal tinha tido recebido combate com o povo do monge do qual tinha resultado a morte do coronel João Gualberto, um sargento e oito praças e também tinha sido morto o célebre monge José Maria e onze companheiros deste”.

Soares acrescenta que do grupo do monge saíram muitos feridos, conforme lhe informara o sub-comissário de Polícia de Rio do Peixe. O “respondente ignora que Miguel Fragoso e Miguel Fabrício tivessem tomado parte do combate do dia 22; que pelas informações que obteve a este respeito supõe que Miguel Fragoso tivesse seguido do acampamento do monge para o Jacutinga, onde mora, por ter sido visto por Domingos Xalico, na madrugada do dia do combate, isto nas proximidades da casa de [...] na estrada do Jacutinga, légua e meia, mais ou menos, distante do acampamento do monge”.

Soares revela que “Praxedes de Tal, residente em Campos Novos, se achava em companhia do monge com alguns companheiros que trouxe dali [...]”; quanto ao número de homens ao lado de José Maria, calcula em “200 e tantos, mais ou menos”; que após saber do ocorrido, seguiu a Palmas, onde chegou no dia 23, prestando auxílios a feridos no trajeto. Tomou outras providências, que “julgou adequadas ao momento” . Na ocasião, em que conversara com o Chefe de Polícia, soubera “minuciosamente de todo o ocorrido no combate de 22 de outubro [...]”.



Família do coronel Domingos Soares. As fotos foram reproduzidas no Museu Histório Professor José Alexandre Vieira (Palmas-PR).

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Caro Vicente Telles



Tem chovido muito em Florianópolis. Quase todos os dias. E eu me lembro dos temporais do Irani formando nuvens e neblinas no alto da cachoeira em tua propriedade, emolduradas pelos pinheiros e a floresta. Manda um abraço ao Deco e d. Nena e não esqueça de transmitir meus cumprimentos à avó. E também ao Vicentinho.

Bem sei que o pior já passou ou vai passar a partir de 1º de janeiro de 2009, quando assumirá a nova administração no município disposta a encarar com seriedade teus esforços em relação ao Contestado. Não dê importância às maldades que fizeram contra tua pessoa. Os lobos vão continuar uivando e tua tropa passará ilesa.

Soube que tens recebido muitos estudantes e professores interessados nas tuas performances com temas do Contestado. Tentaram tirar isso de ti e não conseguiram. Os mesmos que deixaram sem flores esse ano o Cemitério do Contestado aí no Irani. Mas em novembro de 2009 elas estarão floridas novamente. Ou um pouco antes, lá pelo final de outubro, quando os Fabrício das Neves e outros descendentes de ex-combatentes do Irani estarão na cidade.

Atendendo a solicitação, estou encaminhando também algumas fotos tuas em diversos momentos. Por outro lado, estou curioso para conhecer tua sala forrada de taquaras e com piso de rodelas de pinheiros, onde as figuras dos três monges do Contestado estão presentes. Já me disseram que tem energia, beleza, bom gosto, proporcionando uma sensação de bem-estar a quem nela penetra. Logo estarei aí para registrar tua iniciativa.

Até

Celso

(Sambaqui/Florianópolis, 20 de novembro de 2008)



Dina e Guilhermina (irmãs de Vicente), Vicente e o filho Vicentinho. Irani-SC (9.9.2007)




Vicente em Sambaqui (Florianópolis). Na foto de baixo aparecem Deco (camisa verde) e Vicentinho. (18.10.2007)


Vicente sendo fotografado por Marco Cezar




Fotos: Marco Cezar.


quarta-feira, 19 de novembro de 2008

José Fabrício das Neves (13)

Aspectos do abandonado Parque do Contestado no Irani-SC (2002). Fotos J. L. Cibils.




São João Maria em União da Vitória-PR. Foto: J. L. Cibils.


O reduto do Irani


Dona Maria Antunes Lemos reside em Vargem Bonita, entre Catanduvas e Irani. É filha de Gabriel Fabrício das Neves e Lúcia Maria Antunes, irmã de Crispina, esposa de José Fabrício. Descende dos Antunes de Passo Fundo-RS, todos maragatos. Conversei com ela em duas ocasiões e, numa delas, perguntei como era o reduto do Irani. Ela me disse que sua mãe esteve lá, viu algumas pessoas sentadas no chão em volta de fogueiras, outros tocando violão. “Ela não viu nada de mais”, assegurou.

O reduto do Irani se localizava na região do Banhado Grande, na época conhecido por Faxinal dos Fabrício, nas margens da BR-153. Era ali que moravam José, Thomaz e Miguel Fabrício das Neves, e outros da mesma família. Havia uma igreja e cemitério. Um cemitério ainda existe, possivelmente o mesmo (Cemitério do Contestado), mas da igreja não resta vestígio físico ou na memória dos moradores locais.

Nas imediações foi represado um lago e no meio dele erguido um grande palco inacabado, com arquibancadas nas laterais e uma maior no outro lado do espelho d’água. Integra o conjunto do Parque do Contestado que está abandonado. O local é cortado desde os anos 1970 pela BR-153. Foi em algum ponto dessa área que se formou o reduto do Irani, atacado por forças policiais militares do Paraná no início da manhã de 22 de outubro de 1912.


Combate à vista

Alguns depoimentos no Processo do Irani ilustram melhor o que foi o reduto. Para começar, muitas mulheres, esposas e filhas de moradores locais, ocuparam a cozinha da casa de Miguel Fabrício das Neves, encarregadas de preparar a alimentação de José Maria, seus Pares de França, e outros mais chegados, como o próprio José Fabrício. Quando o combate se aproximou, muitas mulheres, crianças e idosos se refugiaram na casa de Fidêncio Fabrício das Neves (avô de dona Aurora, residente em Coronel Domingos Soares-PR).

Outros depoimentos dão conta de que José Fabrício foi encarregado por José Maria de se deslocar até Engenho Velho para mobilizar o coronel da Guarda Nacional e ex-maragato, Miguel Fragoso. Outros chefes locais foram contatados por José Fabrício e José Alves Perão. Historiadores do Paraná dizem que Gabriel Fabrício das Neves, pai de dona Maria citada acima, fez o mesmo, apesar de ser na época inspetor de quarteirão, uma espécie de policial civil. Ou seja, havia um clima de preparação para o combate que se aproximava.


Pírulas da Vida

Polydoro Fabrício das Neves, filho de Maria Fabrício e Miguel do Espírito Santo, ouvido no inquérito no dia 19 de novembro de 1912, estava com 30 anos de idade, era casado, lavrador, gaúcho e analfabeto. Disse que no dia 14 de outubro daquele ano chegara de Palmas ao Irani quando soubera da presença do monge na residência de Thomaz Fabrício das Neves.

Precisando de remédios para pessoas de sua família, três ou quatro dias depois foi com Gabriel Cordeiro a casa de Thomaz, onde encontrou José Maria. Estava acompanhado de um grupo de 50 homens, muitos bem armados, inclusive “um piquete de cavalaria denominado ‘Doze Pares de França’ nos quais o monge depositava toda confiança, usando todos uma fita branca em volta do chapéu”.

Poly, como era chamado, se dirigiu a José Maria, “que era um bom curador, e pediu uma receita para sua mulher que estava doente”. O monge receitou “Pírulas da Vida”, medicamento que foi adquirido depois em Palmas, “as quais, tomadas por sua mulher produziram o efeito desejado”. Mais tarde, quando José Maria já estava na casa de Miguel Fabrício, Poly voltou a conversar com José Maria e estava a seu lado no entrevero.


Cozer uma bandeira

“Era o que minha mãe contava quando eu era menininha, todos se reunia lá, pois, os conselhos que ele dava as rezas que ele fazia e só pra vê, meu pai gostava e um dia 9...0 veio e falou eu vim te buscar pra ir lá é tão bom, ele reza, ele dá conseio, ele conta história, é muito bom (...) quando o pai saiu pra buscar minha mãe, já tinha os do Paraná pra que ele fosse embora pra convence, pra que ele voltasse onde ele veio e diz que ele refere-se ao monge daí falou bastante não chegaram a nada aí ele disse que pode ir vão sossegado, sossegado (...) Após os representante se retirarem o monge chegou na porta da varanda onde estava seu povo, muita gente a espera de uma resposta e diz eu preciso de uma senhora pra cozer uma bandeira (estandarte) e nove homem de coragem que enfrente. E nesse instante alguém perguntou o senhor não concordou que ia embora? Ele responde. Gente eu concordei e conheço maragato [sic] como a palma de minha mão, ele tão prometendo que ele entram aqui, eu me retirando eles entram aqui levam tudo que tem aqui sem vê mulher e criança e eles fazem isso se eu sair, todos morrem daí eles entram e fazem o que estão prometendo eu morro na boca do bicho mas eu não vou. Vou enfrentar ele, pois eles vem e eu vou esperar (...)”.

“...ele chegava nos piquetes, colocou um vidro no chão e disse ele estão vindo mas bem longe (...) ai depois disse estão bem perto. Eu vou e vocês ficam bem firme, saiu numa corrida (...) foi até uma porteira os Fabrício eram os que tavam lá cuidando (...)”. Trechos do depoimento da senhora Cecília Kades a Elenita Ribeiro. Irani (SC), 11.10.2004. In Irani pós-combate (1912-1926). Monografia de Elenita Ribeiro (Curso de História, UnC Concórdia, 2004, pgs 23-25)


Missa muito bem rezada

Maria Joana Perão acordou cedo no dia 20 de outubro de 1912, um domingo. Com cerca de 60 anos de idade, nascida no Rio Grande do Sul, ela escolheu o melhor que tinha no guarda-roupa. Acompanhada dos filhos José, Desidério e Elizeu Alves Perão, se deslocou até a igreja no Faxinal dos Fabrício, onde o monge José Maria rezou uma missa, “religiosamente ouvida por todos os moradores” locais. Terminada a celebração, os fiéis beijaram a mão do monge, inclusive dona Maria Joana e seus três filhos.

José Maria havia retornado ao Irani alguns dias antes, acompanhado por cerca de 40 homens armados, permanecendo inicialmente na casa de José Fabrício das Neves, no Pinhal (hoje em Vargem Bonita). No dia 14 foram para a residência de Thomaz Fabrício das Neves. Quatro dias depois se transferiu para a de um tio de Thomaz, Miguel Fabrício das Neves, nas proximidades. Alguns quartos da casa foram destinados a José Maria e Praxedes Gomes Damasceno, tratado por “comandante” ou “capitão”, enquanto os demais se alojaram em barracas no terreno em volta.

Feliciana Gonçalves dos Santos, 60 anos, esposa de Miguel Fabrício, viveu dias agitados desde a chegada daqueles homens. Certamente não teve que se preocupar com cobertas, pois em outubro a temperatura fica mais amena na região, mas fazer comida para tanta gente preocupava. Por sorte, algumas vizinhas se juntaram ao esforço culinário, como dona Maria Joana Perão. (Processo do Irani/Palmas-PR, fls 148-149)b


Ouvidos atentos desde a cozinha, onde ajudava no preparo dos alimentos, dona Maria Joana Perão acompanhou toda a movimentação que antecedeu o momento do combate, como a visita do coronel Domingos Soares no dia 21. Ao amanhecer do dia 22, soube que José Maria havia saído acompanhado por todo o seu pessoal na direção do Banhado Grande.

Pouco depois passou um moço ruivo e disse que as forças do monge estavam brigando com as do Governo. Em seguida apareceu José Fabrício das Neves, avisando que a polícia ia entrar e queimaria todas as barracas e a casa onde José Maria estivera acampado. (Processo do Irani/Palmas-PR, fls 148-149)


O que os animava

O “programa político” dos redutos, se assim podemos considerar, se fundamentava nos princípios da economia moral, ou seja, das relações que existiam com a terra e as florestas e outras riquezas, antes que passassem a ter valor de mercado. Mas é preferível que os próprios caboclos forneçam os elementos para a compreensão do que os animava. No caso do combate do Irani, temos o quadro de um agrupamento de “posseiros” frente aos interesses de coronéis (no livro eu discuto o conceito de coronelismo) e a chegada de uma força armada. Mas quem organiza a resistência é José Maria, ao lado dos chefes locais, entre eles José Fabrício das Neves.


Mandamentos do monge João Maria para uma boa vida no sertão1.


1) Nunca manche, meu amigo,

Cá mentira os lábios teus:

A mentira é farsidade

É contrária as Leis de Deus.


2) Quem odeia argúem no mundo

Ta ca alma enegrecida:

Todo ódio traz doença

E azar pra toda vida.


3) A inveja abate a gente

Invejoso é detestado

Quem cobiça o aiêio

A sofrê ta condenado.


4) Não se logra, nem se roba

São dois crime sem perdão

Os veiaco vão pro inferno

Pro diabo os ladrão.


5) Não se deve caluniá

A calúnia é pecado;

O aleive é um crime

Quem comete tá ralado.


6) O avarento é réu de curpa

Já tá preso e condenado;

Avareza é loucura

Custa muito sê curado.


7) Não se perca o respeito

Às famíia de quem tem

Quem não quer que mar lê faça

Nunca faça pra ninguém.


8) Nem sonhando tire a vida

Por mau impre a assassino;

Quem tirá o que não deu

Arrasô co seu destino.


9) Se argúem matá com raiva

Ave, bicho ou alimá

Faz um crime, é réu de culpa

Lá no Grande Tribuná.


10) Tenha sempre rua família

Como Santos do teu lar

Pro seu bem trabaie sempre

Que Deus há de te pagar.


11) Ninguém força tu te fio,

Mas se um dia fíios tive

Eles são o resurtado

Do que deles tu fizé.


12) Premiado ou reprovado

Pela sua inducação

O que deles tu fizé

Cedo ou tarde pagarão.


13) Se tu for um camarada

Zele tudo do patrão

Trabaiando com respeito

Cuide bem da obrigação.


14) Sendo dono ou encarregado

De fazenda ou de empreitada

Operário é como fíio

Cuida bem dos camarada!




1 Décimas declamadas por João Maria Linhares (Palmas-PR). Transcrição de Paulo Pinheiro Machado.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Avulsas (7)












Ensaio fotográfico no inverno de 2007 na propriedade de Vicente Telles (Irani-SC).

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

José Fabrício das Neves (12)

Antônio Martins Fabrício das Neves (Irani, 7.9.2007). Foto: Marco Cezar.


Paulo Pinheiro Machado entrevista Antônio Martins Fabrício das Neves (Iraní-SC), dia 11 de fevereiro de 1998. Na época estava com 75 anos de idade (nasceu em 1922). O músico e folclorista Vicente Telles acompanhou a conversa.


Antônio Martins Fabrício das Neves – “Eu era curioso e, em 1934, pro povo daqui tudo ainda estava quente, pro sentimento que eles tinham com tudo o que aconteceu, eles custaram muito a esquecer. Em 1934 eu já compreendia alguma coisa na escola, aquelas escolas que eram pagas pelos próprios pais, então eu gostava de escutar as conversas das pessoas mais antigas e fiz um caderninho de anotações, fui juntando todas as histórias porque eu sabia que a maioria deles não sabia nem escrever nada e eu queria guardar aquelas histórias. Esse professor que nós tivemos veio do Rio Grande, era um parente que eles mandavam buscar pra ensinar as crianças daqui. Aqui (no Iraní) não tinha outras famílias a não ser os Soares, os Fabrício e os Beirão. Do Rio Grande só veio esta gente. Eles vieram em mais ou menos umas dez famílias, em 1896, na época da guerra dos pica-paus (Revolução Federalista). A razão deles virem para cá foi a guerra, porque meu avô materno se chamava Salvador Inácio Cardoso e ele era coronel de fazenda, na guerra de 93, eles venceram a guerra, mas ai por 95 ou 96 o monge João Maria andou lá pelo Rio Grande e disse pro meu avô : Olha Cardoso, é melhor pegar tua família e ir pra outra região porque estes que perderam a guerra querem se vingar de vocês! Vieram dez famílias e seus agregados. O Monge deu a indicação bem certa, disse ao Cardoso que era para pegar a sua gente e ir para o Sertão de Palmas, que era como se chamava toda essa região que fica entre os rios Uruguai e Iguaçú. O monge ajudou a colonizar essa região, ele disse pro Cardoso: O que vocês tem aqui, tem lá! Hoje nós estamos numa fase em que o povo já não está mais pertencendo a essas coisas. Hoje com a ganância, e o orgulho, as pessoas já não dão valor às coisas que tem o seu valor. Porque o povo de Santa Catarina deve a vida pra esses homens."


(Neste momento ele fala de uma série de dificuldades que ele, Antônio Fabrício, e o folclorista Vicente Telles, enfrentaram no Município para convencer as autoridades locais da importância da comemoração da data da batalha do Iraní como feriado municipal e, até, estadual).


Paulo Pinheiro Machado – O pessoal que veio de Taquaruçú acompanhando o monge até aqui, o que foi feito deles após a batalha ?

AMFN – Não voltaram pra Taquaruçú nem ficaram aqui, procuraram esconderijo. Hoje o lugar se chama Eugênio Veiga, onde estão construindo uma barragem, naquela época eles chamavam de Volta Fechada, que é onde o rio Uruguai faz uma curva. Eu estive lá quando era pequeno, fui no colo a cavalo com a minha mãe porque o meu pai ficou um tempo escondido lá. Todo mundo daqui foi pra lá, só ficaram aqui as mulheres, crianças e os agregados e peões de fazenda, aqueles caboclos, homens de confiança, que eles traziam do Rio Grande. A turma que foi pra Volta Fechada ficou por lá uns 4 ou 5 anos. Eles sofreram muito porque naquela região só tinha mato e bichos, diziam que esse sertão parecia até azul, de tanto mato que tinha. A Vila do Iraní ficou guarnecida por muitos anos por uma tropa vinda de Curitiba. Eu me lembro até hoje dos toques de corneta, muitos anos depois, eles se retiravam um pouco mas depois voltavam.

Vicente Telles – Isto começou com a coluna comandada pelo Coronel Pyrrho, que, depois do combate do Iraní, foi mandado pra cá com uma expedição punitiva e de reconhecimento. Eles não sabiam quem morava por aqui, não conheciam nada da região. Eles queriam saber se tinha alguma coisa armada por trás daquele combate. Mas isto aconteceu entre 1912 e 1913, não era ainda a "operação limpeza" que aconteceu anos mais tarde.


PPM – Teve gente daqui que foi pra Taquaruçú ?

AMFN – Sim, teve gente que foi. O pessoal antigo falava muito disso, muitos foram e sofreram por lá.


PPM – E José Maria, ele era do Paraná ?

Antônio Fabrício : Dizem que parece que ele era uma praça aposentado da polícia de Curitiba, mas isto ninguém sabe ao certo. O certo mesmo é que era um homem com muita instrução, muito entendido.


PPM – Ele fazia curas ?

AMFN – Ele ensinava, mas ele nunca se propôs a ser um curador como diziam. Dizem até que o combate aconteceu porque ele construiu um santuário por aqui, uma bobeira, isso não é verdade. O combate se deu por causa da disputa do terreno daqui, que era Paraná. O velho Fabrício, quando chegou aqui, queria montar uma colônia com sua gente, com auxilio do monge. Esse pessoal chegou em paz aqui, não sei o que o que as autoridades de Curitiba pensaram pra mandar a força bater aqui: (versos da autoria de Antônio Fabrício, ele escreveu "conforme contavam os antigos").


João Gualberto está chegando

E assim foi procurado

O Monge mandou uma carta

Escrita bem declarado

Não precisamo brigá

Porque não somo intrigado

Não vamo fazê ajuste

Nem matar quem não é culpado


Coronel deu um sorriso

Com o olhar entusiasmado (para aquele que foi levar a carta do monge)

E não aceito esta carta

E muito menos o recado

Porque já trouxe as cordas

E vou levar tudo a laço

(Ele afirma que as cadernetas que possuem os versos completos sobre o combate no Iraní estão com o senhor Rubem Lang, que mora no Rio Grande, que levou emprestado.)


Daí houve a conversa entre o Monge e Fabrício :


O monge ficou pensando

E disse ao Fabrício

Emocionado e indeciso :

Nós não queria brigá

Mas brigamo se for preciso


PPM – Quando chegou o monge José Maria vindo de Taquaruçú para cá, as famílias daqui o receberam bem ?

AMFN – Receberam muito bem, porque era gente da mesma tradição.

VT – Alguns livros dizem que José Maria tinha amigos por aqui, será que tinha mesmo?

AMFN – Tinha, acho que ele conhecia daqui o Major Fragoso, Major de Fazenda (da Guarda Nacional) que era chamado por aqui de Coronel Fragoso. O Coronel Fragoso era um antigo federalista gaúcho que veio pra cá por 1896 ou 97. Depois do combate do Iraní a polícia ficou muito tempo procurando ele. Tinha também um tal de Teobaldo Madeira, que também era amigo do monge e tinha inclusive uma foto dele junto ao Fabrício. Certamente ele (o monge) quando veio aqui para esse sertão tinha alguém conhecido, poderia ter ficado em Catanduvas, Joaçaba, mas aqui era mais abrigado. Ele naturalmente se dava muito bem com o Fabrício. Dizia o Fabrício que o ideal do monge era formar uma colonização, com famílias, neste terreno daqui, não é como diziam que ia ser um reduto de jagunços e bandidos.

VT – E as pessoas que vieram com o José Maria de Taquaruçú, eram muitas ?

AMFN - Não vieram muitos. Eram poucos como eles falavam, mas eles já tinham conhecimento com essa gente daqui, eles já tinham uma relação com a gente daqui. Eles tinham amigos em que podiam depositar confiança. Da gente de Taquaruçú que veio aqui foram muito poucos que participaram do combate.


PPM – A maior parte do pessoal que participou do combate era daqui ?

AMFN – Sem dúvida, era o povo do Irani. Era muita gente que vinha dos fundões da fronteira daqui, gente reunida pelo Fabrício.

VT - Dizem alguns historiadores que vieram 40 cavaleiros de Taquaruçú junto com o monge José Maria, não sei se chegou a esse número. Como na batalha se estima que eram mais de 200 atacantes (contra a força chefiada pelo Capitão João Gualberto), então realmente a maioria do pessoal era daqui.

AMFN – Sim, diziam eles que eram mais de 200. Daquela região que hoje é Concórdia, já tinha bastante morador naquela época, veio essa gente de lá pro combate daqui, gente liderada por aquele Coronel Fragoso e pelo Fabrício.

VT – A grande maioria era de gente do Rio Grande, que tinha experiência de guerra, era gente de briga, bem treinada, muitos tinham participado da Revolução Federalista.

AMFN – Era gente com experiência em combate e prática de mato. Senão como eles iam vencer a batalha sem armas ? Eles souberam distribuir bem o pessoal na mata, esperaram o Gualberto avançar e só depois é que se mexeram.


PPM – O pessoal realmente achava que o José Maria ia ressuscitar ?

AMFN – Muitos acharam, mas aqueles homens mais antigos não acreditavam nessa história. Até eles diziam, nós temos que nos preparar para brigar. Naquela parte da minha escrita tem um pedaço que é assim, o Zé Maria fala ao Fabrício :


Fabrício vou te dizer

Que está escrito no relato

Tu não passa do meu sangue

Volta de novo pro mato

Que no sertão serás um tigre

E no campo serás um gato


Então era essa a mensagem, eles tinham que se preparar para se defender.


(A seguir Antônio Fabrício faz uma série de críticas à educação e à escola atuais, fazendo uma defesa dos antigos valores de justiça, caráter e inteligência, "as coisas puras estão no tempo passado ").


PPM – José Maria e seus devotos diziam que o mundo ia acabar, não?

AMFN – Não mesmo! O próprio monge dizia e perguntava se todo mundo sabia rezar Glória ao Pai. As pessoas só sabiam um pedacinho. Na verdade a reza completa terminava com ' pai e glória do filho e do espírito santo, por séculos e séculos sem fim, amém !',

VT – Quem profetizava o fim do mundo era o monge João Maria.

AMFN – Ele contava o que está acontecendo agora, esse João Maria. Lembro que eu já era meio grandinho, meu pai dizia que o João Maria leu o livro(?) e já tinha avisado de que no futuro iam acontecer umas mudanças que não seriam boas, muita gente de bem seria enganada e traída. As pessoas irão sofrer muito. As famílias tradicionalistas, que procuram educar seus filhos no caminho certo, que são contra a ganância, vão sofrer muito e ser exploradas. As coisas mudaram muito mesmo, e para pior, vi isto nesses meus mais de 70 anos de vida. Em todos os setores onde há mudança, é sempre pra pior. Aquele político que diz que vai mudar tudo, acho um perigo, porque na realidade ele só vai massacrar mais a pobreza, vai fazer sofrer os caboclos, esse pessoal mais humilde.


PPM - O pessoal que acompanhava o monge José Maria era chamado de fanático, o senhor concorda com isso ?

AMFN – Não. Isso aí é o que eles (os inimigos) queriam dizer para desacreditar o homem. Queriam dizer que ele estava mentindo. Que ele se dizia ser um santo, eu nunca ouvi dizer que alguma vez ele falou isso. Ele dava os pareceres dele, mas dentro de um ritmo de futuro, de respeito, de gente que queria crescer junto. Por isso é que essa gente de Curitiba veio aqui dizendo que era o tal fanatismo, que ele nunca pregou, nunca defendeu. Eram os de fora que chamavam de fanáticos, e principalmente os de fora que se interessaram por esse pedaço de terra. Que eles estavam se preparando para o que aconteceu hoje. Porque se não fosse esse combate deles ai, onde muitos entregaram a vida, nós não estaríamos aqui agora. Quem defendeu os catarinenses, quem defendeu o Estado de Santa Catarina, foram esses três homens (José Maria, Fabrício e Fragoso). Defender esta terra, este era o ideal deles. Como diz o verso :


Que terrível madrugada

Que terrível despedida

No espaço de uma hora

A questão foi decidida

E hoje só nos resta o nome

De quem por nós deu a vida


Foi isso que nos deixou Zé Maria, ele deu a vida por nós. Ele não procurava destruir, pelo contrário, queria construir, encaminhar, orientar aqueles que precisavam. Era um trabalho muito grande porque todo mundo precisava de uma orientação naquele tempo. As pessoas por ai, sem escola, no mato, então por isso que respeitavam muito ele, por isso que gostavam dele. (...)

Dizem que do combate aqui participaram 246 homens. Eles deixaram uma turma carneando as vacas, enquanto os outros foram pro combate. A nossa gente ainda foi lá no outro dia, pra fazer uns valos e enterrar a montoeira de soldados mortos.


Paulo Pinheiro Machado conversa com Sérgio Rubin (Canga). Florianópolis, 4.7.2007. Foto: Margaret Grando.